A chave teórica de toda esta problemática reside, para Genette, no conceito de função poética de Roman Jakobson: a insistência do texto na sua própria forma, mais percetível, intransitiva, minimizando a função comunicativa da linguagem. À pergunta: o que faz de um texto uma obra de arte?, a resposta de Jakobson é clara: a função poética. A poesia é definida como linguagem na sua função estética98. Mas, de acordo com Genette, tal como a teoria aristotélica desprezava toda a poesia não-ficcional, Jakobson e os seus seguidores nunca tentaram seriamente agregar a esfera da ficção (prosa, teatro), caracterizando-a pela simples ausência de imposições formais. Assim, tanto a poética temática de Aristóteles como a formal de Jakobson têm apenas parte da razão, pois cobrem somente uma parte das esferas literárias. O mais grave, de acordo com Genette, é que ambas as poéticas, uma e outra de tipo essencialista, são incapazes de abarcar, por exemplo, a literatura não-ficcional em prosa como a história, a biografia, o ensaio, entre outros99.
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Genette entende, por isso, necessário recorrer a uma poética condicionalista, mais instintiva e ensaística do que teórica ou doutrinal, que confie ao juízo de gosto, subjetivo e imotivado, o critério da literariedade. O seu princípio básico consiste em considerar literário todo o texto que provoca prazer estético. A sua relação com a universalidade manifesta-se sob a forma de desejo, como demonstrou Kant100. O descritivo, nestas poéticas, tende a ceder perante o valorativo e, consequentemente, o diagnóstico de literariedade de um determinado texto confunde-se com a apreciação subjetiva da qualidade. A ficcionalidade é, então, condição necessária, mas não suficiente, para a literariedade. Genette diz estar convencido do contrário, pois, se uma epopeia, uma tragédia, um soneto ou um romance são obras literárias, não é em virtude de uma avaliação estética, mas sim de um traço inerente a tais textos, tal como a ficcionalidade e a forma poética101. A literariedade parece totalmente independente dos juízos de valor individuais ou coletivos. A consequência final, para Genette, parece evidente: não se deve substituir as poéticas essencialistas pelas condicionalistas, mas colocar estas num lugar junto àquelas.
A literariedade é um fenómeno plural, exige uma teoria pluralista que dê conta das diferentes formas que a língua tem de escapar à sua função prática e produzir objetos estéticos. Neste sentido, Genette propõe que na apreciação de um texto como obra literária entre em jogo o conceito de regime. Genette distingue em princípio dois regimes de literariedade: o constitutivo, complexo de intenções, convenções genéricas, tradições culturais, etc., e o condicional, apreciações estéticas subjectivas, e sempre revogáveis102. A categoria de regime cruza-se, para Genette, com a do critério empírico em que se baseia – ainda que seja a posteriori – um diagnóstico de literariedade. Distinguem-se dois tipos de critérios: o temático, relativo ao conteúdo do texto, e o remático, relativo ao caráter formal do texto, ao tipo de discurso que exemplifica. O cruzamento das duas categorias determina, para Genette, o quadro dos modos de literariedade possíveis. Assim, a literatura ficcional é a que se impõe essencialmente pelo caráter imaginário dos seus objetos e a literatura diccional ou de dicção é a que se impõe essencialmente pelas suas características formais. Neste sentido, admitindo a possibilidade de que se dão ambos os tipos no estado puro, Genette assinala que o mais frequente é que se combinem num mesmo texto literário. Por último, o autor assinala o que existe de comum entre o modo diccional e o modo ficcional: na sua opinião, ←38 | 39→é o caráter intransitivo, opaco, tanto do discurso poético como do discurso de ficção. A intransitividade da linguagem era atribuída só ao texto poético103, que se concretiza na imutabilidade da sua forma, mas no texto de ficção dá-se pelo caráter ficcional do seu objeto, que determina uma função paródica de pseudorreferência ou de denotação sem o objeto denotado. O texto de ficção, assim, não «conduz» a nenhuma realidade extratextual, tudo o que toma constantemente da realidade se transforma no elemento de ficção.
Ora, quando a banda desenhada surge, graças a Töpffer ainda antes do aparecimento da arte cinematográfica, vem inscrever-se no âmbito do género narrativo e apropria-se das propriedades gerais de toda a narrativa, assim como do seu caráter ficcional. Para Groensteen, a banda desenhada conhece um problema muito semelhante àquele que afeta desde há muito o mundo das letras, pois não basta alinhar uma série de palavras para se obter uma obra literária, da mesma forma que não é suficiente alinhar imagens, mesmo solidárias entre si, para obter uma banda desenhada. Seguindo a esteira de Genette, também Thierry Groensteen considera que outras condições podem ser legitimamente trazidas a debate para a banda desenhada, tais como a natureza das imagens, a matéria, o modo de produção, as características formais, os modos de articulação, o suporte, a difusão e ainda as condições de receção, isto é, tudo o que inscreve as imagens num processo de comunicação específico. Para Groensteen, a procura da essência da banda desenhada não equivale ao processo de definição de literariedade104.
A banda desenhada assenta num dispositivo que não conhece o uso familiar, já que nem todas as pessoas, e muito menos todos os desenhadores e artistas, se exprimem através deste meio – logo, apenas se pode comparar a outras formas de criação que tocam o domínio da arte ou da ficção. Uma vez que a banda desenhada não é fundada sobre um uso particular de uma língua, Groensteen defende que não é possível defini-la em termos de dicção. Mas ela também não se confunde com uma das formas de ficção, uma vez que existem bandas