A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Alexandra Dias
Издательство: Ingram
Серия:
Жанр произведения: Языкознание
Год издания: 0
isbn: 9783631820643
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na origem da sua vocação, ela determinou claramente o seu estilo62.

      Töpffer deixou sete álbuns de banda desenhada e o rascunho de um oitavo. A sua primeira história em estampas, Mr Vieux Bois, é criada em 1827 e marca o aparecimento de um novo género – a literatura em estampas:

      Faire de la littérature en estampes (…) c’est inventer réellement un drame quelconque, dont les parties coordonnées à un dessein aboutissent à faire un tout; c’est, bon ou mauvais, grave ou léger, fou ou sérieux, avoir fait un livre, et non pas seulement tracé un bon mot ou mis un refrais en couples63.

      Crítico literário e erudito, Töpffer tem imediatamente consciência de ter inventado uma nova arte. Esta expressão surge pela primeira vez em Réflexions à Propos d’un Programme64, um prospeto anunciando a abertura de um concurso de histórias em estampas proposto por um mecenas anónimo. Töpffer reflete sobre estas histórias e a influência pedagógica que elas exercem sobre o imaginário popular do seu tempo, aproveitando para fazer uma homenagem a Hogarth, desenhador inglês considerado por ele o precursor e grande impulsor deste «género de literatura»65. O texto não faz nenhuma alusão aos seus próprios álbuns, que representam uma revolução na tradição das narrativas em imagens e fundam, segundo historiadores como François Lacassin, Thierry Groensteen ou David Kunzle, um género inédito – aquilo que designamos hoje como novela ←28 | 29→gráfica. A literatura em estampas é ainda alvo de atenção no opúsculo Essai de Physiognomonie, de 1845, um dos principais textos teóricos sobre este novo género. O Essai ocupa um lugar preponderante entre os textos de Rodolphe Töpffer consagrados às histórias em estampas, tanto pela sua extensão como pelo seu interesse teórico. Retomando as ideias de Lavater sobre fisionomia, mas aplicando-as a um processo gráfico específico, o autor suíço prenuncia a semiótica da imagem na teorização das personagens a partir de morfemas gráficos distintos que constituem os fundamentos da linguagem da banda desenhada66.

      Groensteen e Peeters reconhecem que, se Töpffer fosse apenas o autor das narrativas em imagens, a dívida para com a banda desenhada já seria considerável, mas, não satisfeito com o facto de ter inventado o género, ele é também o seu primeiro teorizador67. Com efeito, Töpffer é o primeiro a utilizar intencionalmente esta forma narrativa e a refletir sobre ela, destacando, muito claramente, aquela que é a especificidade do seu discurso – a complementaridade entre o lisível e o visível: o texto completa a imagem, não podendo um sobreviver sem o outro. Institui o caráter misto daquilo a que chama «récit en images», afirmando que esta forma de contar histórias possui uma natureza mista, sendo impossível separar o texto da imagem:

      Ce petit livre est d’une nature mixte. Il se compose d’une série de dessins autographiés au trait. Chacun de ces dessins est accompagné d’une ou deux lignes de texte. Les dessins, sans ce texte, n’auraient qu’une signification obscure ; le texte, sans les dessins, ne signifierait rien. Le tout ensemble forme une sorte de roman d’autant plus original, qu’il ne ressemble pas mieux à un roman qu’à autre chose68.

      Com efeito, o autor de Mr. Vieux Bois percebeu desde logo as principais especificidades da banda desenhada: o caráter indissociável do texto e da imagem, o papel determinante da personagem na estrutura da narrativa, o tratamento gráfico das expressões corporais e faciais. As suas reflexões são inovadoras e antecipam algumas das tendências em que a nona arte veio a evoluir ao longo do tempo. As inovações introduzidas por Töpffer afetam todos os elementos constitutivos do género: o suporte, já que ele preconiza o uso do álbum autografado como suporte privilegiado para as histórias em estampas; as relações entre o texto e a imagem e as relações das imagens entre si, porquanto inventa a tira ←29 | 30→de banda desenhada; e, por fim, o conteúdo narrativo, pois Töpffer representa graficamente o tipo de personagem que constituirá a personagem-tipo da banda desenhada moderna69.

      A sua obra exibe um grau máximo de integração do texto nas narrações em imagens. Apesar de as suas personagens não se exprimirem em balões, ainda que o procedimento lhe fosse familiar, o texto é inserido na mesma vinheta que a imagem, separado dela por um simples traço. A componente verbal e a imagem partilham o mesmo compartimento, numa proporção variável. Partilham os mesmos recursos plásticos e gráficos, elegendo o regime manuscrito, restituindo à caligrafia as suas qualidades estéticas.

      Apesar de não se poder afirmar que Töpffer tivesse pressentido, a cento e cinquenta anos de distância, que o álbum se imporia como formato ideal à publicação de banda desenhada, a sua escolha está longe de ser indiferente. Optando por um livro inteiro, ele tem a possibilidade de desenvolver as suas histórias num número de imagens sem precedentes70. Para além de poder expandir a sua criatividade num maior número de folhas, o álbum obriga a que seja prevista a disposição das vinhetas nas diferentes páginas, o que corresponde à atual operação de decupagem, isto é, à ordenação dos sintagmas sequenciais, com vista a uma finalidade narrativa, uma das relações de tipo linear entre as imagens, que Thierry Groensteen designa por artrologia restrita71.

      Töpffer exibe toda a sua mestria na composição da tira, unidade plástica e narrativa, explorando interessantes efeitos rítmicos da sequência dos quadradinhos e das páginas, cuja compartimentação não obedece a nenhuma outra regra que não a da eficácia retórica.

      ←30 | 31→

      Rodolphe Töpffer, Histoire d’ Albert, 1845.

      O desenhador utiliza frequentemente a montagem paralela ou alternada, entrelaçando cenas simultâneas. Esta técnica, muito audaciosa para a época, assenta na repartição das vinhetas pelo espaço da página. Os diversos quadradinhos são muitas vezes repetidos de forma idêntica, de maneira que cada um dos lugares da ação é ancorado num sítio permanente na página. O texto vem em reforço da imagem, retomando várias vezes, sob o modo de refrão, os mesmos elementos72. De acordo com Groensteen, Töpffer, conjugando a decupagem analítica da ação e a montagem sintagmática dos fragmentos, pôs em prática técnicas narrativas cinematográficas meio século antes do aparecimento do cinema73.

      Ao definir esta forma narrativa como literatura em estampas, Rodolphe Töpffer estabelece a primeira conceção desta arte como uma forma de literatura.

      Na verdade, um livro em banda desenhada é, regra geral, uma obra de ficção, possuindo, tal como a literatura, uma componente textual literária. Vende-se em livrarias e aprecia-se através da leitura. A associação da banda desenhada à literatura constitui um fator de grande desavença entre aqueles que se dedicam ao seu estudo, não obstante ter existido um esforço de legitimação do meio através ←31 | 32→da comparação das literaturas desenhadas à literatura74, e através da constituição do seu corpo teórico pela adoção de conceitos oriundos da semiótica e da ciência literárias. No entanto, a questão impõe-se: e toda aquela banda desenhada que se configura como literária, nomeadamente as novelas e as adaptações de obras literárias? Que espécie de literatura é?

      Aaron Meskin considera, no ensaio «Comics as Literature», que grande parte da resistência ao tratamento da banda desenhada como literatura resulta da combinações de três fatores essenciais: o primeiro, pensar a banda desenhada como literatura significa ignorar os seus elementos visuais; o segundo, não reconhecer a essência da banda desenhada, assim como aquilo que nela é distinto de outras formas; e, o terceiro, haver banda desenhada que não é literatura75.

      Apesar da força argumentativa destas considerações, não temos necessariamente de abandonar a tese «da banda desenhada como literatura», por duas ordens de razões. Primeiro, porque existem bandas desenhadas que possuem os mesmos requisitos narratológicos e novelísticos de um romance e que, em processos de transescrita/adaptação, ao integrar excertos e/ou a totalidade do texto de origem, exibem as mesmas marcas de literariedade. Segundo, porque esta discussão, ao invés de constituir um impasse, permite uma discussão enriquecedora, tanto para a teoria literária como para a teoria da banda desenhada, permitindo compreender fenómenos de fusão