E, por conselho da tia, Amaro, logo que meteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da Sra. condessa de Ribamar, a Buenos Aires. Á porta um coupé esperava.
— A senhora condessa vai sair, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado à ombreira do pátio, de cigarro na boca.
Nesse momento, duma porta de batentes de baeta verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pátio lajeado, uma senhora saía, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabelos frisados sobre a testa, lunetas de ouro num nariz comprido e agudo, e no queixo um sinalzinho de cabelos claros.
— A senhora condessa já me não conhece? disse Amaro com o chapéu na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
— O Amaro? — disse ela, como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem ele é! Ora não há! Está um homem. Quem diria!
Amaro sorria-se.
— Eu podia lá esperar! continuou ela admirada. E está agora em Lisboa?
Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da paróquia...
— De maneira que vim requerer, senhora condessa.
Ela escutava-o com as mãos apoiadas numa alta sombrinha de seda clara, e Amaro sentia vir dela um perfume de pó-de-arroz e uma frescura de cambraias.
— Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido há-de falar. Eu me encarrego disso. Olhe, venha por cá. — E com o dedo sobre o canto da boca: — Espere, amanhã vou para Sintra. Domingo, não. O melhor é daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias pela manhã, sou certa. — E rindo com os seus largos dentes frescos: — Parece que o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Luísa! Como o tempo passa!
— Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
— Sim, bem. Está numa quinta em Santarém.
Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, num aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes de ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
Amaro começou então a esperar. Era em Julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Às vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monótona sussurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia croché, com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.
À noitinha saía, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no ar pesado e imóvel: a todos os cantos se apregoava monotonamente água fresca! Pelos bancos, debaixo das árvores, vadios remendados dormitavam; em redor da Praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.
Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido há-de falar! E via-se já pároco numa bonita vila, numa casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranqüilo e importante, recebendo bandejas de doce das devotas ricas.
Vivia então num estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminário lhe causava a continência, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar à missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao Céu as orações que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.
No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
— Não está, disse-lhe um criado da cavalariça.
Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho, fixado com varões de metal. Da alta clarabóia caia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado numa banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado à parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço caído, dormia. Fazia um grande calor; aquele alto silêncio aristocrático aterrava Amaro; esteve um momento, com o seu guarda-sol pendente do dedo mínimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe parecia terrível com a sua bela suíça preta, o seu rico grilhão de ouro; e ia descer, quando ouviu por detrás dum reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho numa larga sala com estofos de damasco amarelo; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam— se arvoredos de jardim. No meio da sala três homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:
— Não sei se incomodo...
Um homem alto, de bigode grisalho e óculos de ouro, voltou-se surpreendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.
— Sou o Amaro...
— Ah, disse o conde, o Sr. padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher falou-me. Tem a bondade.
E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quase calvo, de calças brancas muito curtas:
— É a pessoa de quem lhe falei. — Voltou-se para Amaro: — É o senhor ministro.
Amaro curvou-se, servilmente.
— O Sr. padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi criado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu...
— Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro, que se conservava afastado, com o guarda-sol na mão.
— Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora — já não há disso! — fê-lo padre. Houve até um legado, creio eu... Enfim, aqui o temos pároco... Onde, Sr. padre Amaro?
— Feirão, excelentíssimo senhor.
— Feirão?... disse o ministro estranhando o nome.
— Na Serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado.
Era um homem magro, entalado numa sobrecasaca azul, muito branco de pele, com soberbas suíças dum negro de tinta, e um admirável cabelo lustroso de pomada, apartado até ao cachaço numa risca perfeita.
— Enfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguesia pobre, sem distrações, com um clima horrível...
— Eu meti já requerimento, excelentíssimo senhor, arriscou Amaro timidamente.
— Bem, bem, afirmou o ministro. Há-de arranjar-se, — e mascava o seu charuto.
— É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e ativos devem estar nas paróquias difíceis, nas cidades... É claro! Mas não; olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, há um velho, um gotoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.
— É verdade, disse o ministro, mas essas colocações nas boas paróquias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessário o estímulo...
— Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionais, serviços à Igreja, não serviços aos governos.
O homem das soberbas suíças negras teve um gesto de objeção.
— Não acha? perguntou-lhe o conde.
— Respeito muito a opinião de vossa excelência, mas se me permite... Sim, digo eu, os párocos na cidade são-nos dum grande serviço nas crises eleitorais. Dum grande serviço!
— Pois sim. Mas...
— Olhe vossa excelência, continuou ele, sôfrego da palavra. Olhe vossa excelência em Tomar. Por que