— Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, — disse o pároco com a sua voz baixa e suave.
— É pedir! O que há, da melhor vontade...
— Oh criatura de Deus! interrompeu o cônego jovialmente, o que ele quer agora é cear!
— Também tem a ceiazinha pronta. Desde as seis que está o caldo a apurar...
E saiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
— Vá, Ruça, mexe-te, mexe-te!...
O cônego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:
— É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.
— Eu estou bem em toda parte, padre-mestre, disse o pároco, caçando os seus chinelos de ourelo. Olha o seminário!... E em Feirão! Caía— me a chuva na cama.
Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cometas.
— Que é aquilo? perguntou Amaro, indo à janela.
— As nove e meia, o toque de recolher.
Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candeeiro esmorecia. A noite estava muito negra. E havia sobre a cidade um silêncio côncavo, de abóbada.
Depois das cometas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janela um soldado, que se demorara nalguma viela do Castelo, passou correndo; e das paredes da Misericórdia saía constantemente o agudo piar das corujas.
— É triste isto, disse Amaro.
Mas a S. Joaneira gritou de cima:
— Pode subir, senhor cônego! Está o caldo na mesa!
— Ora vá, vá, que você deve estar a cair de fome, Amaro! — disse o cônego, erguendo-se muito pesado.
E detendo um momento o pároco, pela manga do casaco:
— Vai você ver o que é um caldo de galinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!...
No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo à luz forte dum candeeiro de abajur verde. Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo e, na larga travessa a galinha gorda, afogada num arroz úmido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma aparência suculenta de prato morgado. No armário envidraçado, um pouco na sombra, viam-se cores claras de porcelana; a um canto, ao pé da janela, estava o piano, coberto com uma colcha de cetim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha dum tabuleiro de roupa lavada, o pároco esfregou as mãos, regalado.
— Para aqui, senhor pároco, para aqui, disse a S. Joaneira. Dai pode vir-lhe frio. — Foi fechar as portadas das janelas; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros. — E o senhor cônego toma um copinho de geléia, sim?
— Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o cônego, sentando— se e desdobrando o guardanapo.
A S. Joaneira, no entanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o pároco, que, com a cabeça sobre o prato, comia em silêncio o seu caldo, soprando a colher. Parecia bem-feito; tinha um cabelo muito preto, levemente anelado. O rosto era oval, de pele trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas compridas.
O cônego, que não o via desde o seminário, achava-o mais forte, mais viril.
— Você era enfezadito...
— Foi o ar da serra, dizia o pároco, fez-me bem! — Contou então a sua triste existência em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza do Inverno, só com pastores. O cônego deitava-lhe o vinho de alto, fazendo-o espumar.
— Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! Desta gota não pilhava você no seminário.
Falaram do seminário.
— Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o cônego.
— E do Carocho, que roubava as batatas?
Riram; e bebendo, na alegria das reminiscências, recordavam as histórias de então, o catarro do reitor, e o mestre do cantochão que deixara um dia cair do bolso as poesias obscenas de Bocage.
— Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
A S. Joaneira então pôs na mesa um prato covo com maçãs assadas.
— Viva! Não, lá nisso também eu entro! exclamou logo o cônego. A bela maçã assada! nunca me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, cá a nossa S. Joaneira ! Grande dona de casa!
Ela ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto; pôs no prato do cônego, com requintes devotos, uma maçã desfeita, polvilhada de açúcar; e batendo-lhe nas costas com a mão papuda e mole:
— Isto é um santo, senhor pároco, isto é um santo! Ai! devo -lhe muitos favores!
— Deixe falar, deixe falar, dizia o cônego. — Espalhava-se-lhe no rosto um contentamento baboso. — Boa gota! acrescentou, saboreando o seu cálice de Porto. Boa gota!
— Olhe que ainda é dos anos da Amélia, senhor cônego.
— E onde está ela, a pequena?
— Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquilo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a noite.
— Cá esta senhora é proprietária, explicou o cônego, falando do Morenal. É um condado! — Ria com bonomia, e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulência da S. Joaneira.
— Ah, senhor pároco, deixe falar, é uma nesga de terra... disse ela.
Mas vendo a criada encostada à parede, sacudida com aflições de tosse:
— Ó mulher, vai tossir lá para dentro! credo !
A moça saiu, pondo o avental sobre a boca.
— Parece doente, coitada, observou o pároco.
Muito achacada, muito!... A pobre de Cristo era sua afilhada, órfã, e estava quase tísica. Tinha-a tomado por piedade...
— E também porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a desavergonhada... Meteu-se aí com um soldado!...
O padre Amaro baixou devagar os olhos — e trincando migalhas, perguntou se havia muitas doenças naquele Verão.
— Colerinas, das frutas verdes, rosnou o cônego. Metem-se pelas melancias, depois tarraçadas de água... E suas febritas...
Falaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.
— Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, tenho saúde, tenho!
— Ai, Nosso Senhor lha conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a S. Joaneira. — Contou imediatamente a grande desgraça que tinha em casa, uma irmã meio idiota entrevada havia dez anos! Ia fazer sessenta anos... No Inverno viera-lhe um catarro, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...
— Há bocado, ao fim da tarde, teve ela um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou mais...
Continuou a falar "daquela tristeza", depois da sua Ameliazinha, das Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo — sentada, com o gato no colo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão. O cônego, pesado, cerrava as pálpebras; tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo; a luz do candeeiro esmorecia.
— Pois senhores, disse por fim o cônego mexendo-se, isto são horas!
O padre Amaro