As amigas da S. Joaneira — as íntimas — a D. Maria da Assunção, as Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa dela para se porem ao fato... Eram nove horas, Amaro saíra com o cônego. A S. Joaneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da manhã; e imediatamente, com animação, contou a chegada do pároco, as suas boas maneiras, o que tinha dito...
— Mas venham vocês cá abaixo, sempre quero que vejam.
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o baú de lata, uma prateleira que lhe arranjara para os livros.
— Está muito bem, está muito bem, diziam as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito, como numa igreja.
— Rico capote! — observou D. Joaquina Gansoso, apalpando o pano das largas bandas que pendiam ao comprido do cabide. — É obra para um par de moedas!
— E a boa roupa branca! disse a S. Joaneira, erguendo a tampa do baú.
O grupo das velhas curvou-se com admiração.
— A mim o que me consola é que ele seja um rapaz novo, disse D. Maria da Assunção, piedosamente.
— Também a mim, disse com autoridade a D. Joaquina Gansoso.
Estar a gente a confessar-se e a ver o pingo do rapé, como era com o Raposo, credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Miguéis! Não, lá isso Deus me mate com gente nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do pároco, — um crucifixo que estava ainda embrulhado num jornal velho, o álbum de retratos, onde o primeiro cartão era uma fotografia do Papa abençoando a cristandade. Todas se extasiaram.
— É o mais que se pode, diziam, é o mais que se pode!
Ao sair, beijando muito a S. Joaneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando o pároco, uma autoridade quase eclesiástica.
— Vocês apareçam à noite, disse ela do alto da escada.
— Pudera!... gritou D. Maria da Assunção, já à porta da rua, traçando o seu mantelete. — Pudera!... Para o vermos à vontade!
Ao meio-dia veio o Libaninho, o beato mais ativo de Leiria; e subindo a correr os degraus, já gritava com a sua voz fina:
— Ó S. Joaneira!
— Sobe, Libaninho, sobe, disse ela, que costurava à janela.
— Então o senhor pároco veio, hem? perguntou o Libaninho, mostrando à porta da sala de jantar o seu rosto gordinho cor de limão, a calva luzidia; e vindo para ela com o passinho miúdo, um gingar de quadris:
— Então que tal, que tal? tem bom feitio?
A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura dos seus dentes...
— Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota. -. Mas não se podia demorar, ia para a repartição! -. Adeus, filhinha, adeus! — E batia com a sua mão papuda no ombro da S. Joaneira. — Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei ontem a Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
A criada tinha entrado.
— Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãe dos Homens. — E avistando Amélia pela porta do quarto entreaberta: — Ai, que estás mesmo uma flor, Melinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!
E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:
— Adeusinho, adeusinho, pequenas!
— Ó Libaninho, vens à noite?
— Ai, não posso, filha, não posso. — E a sua vozinha era quase chorosa. — Olha que amanhã é Santa Bárbara: tem seis Padre-Nossos de direito!
Amaro fora visitar o chantre com o cônego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta de recomendação do Sr. conde de Ribamar.
— Conheci muito o Sr, conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: há que anos isso vai!
E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, falou com satisfação do seu tempo; contou anedotas da Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excelência), os tiques, as caturrices, — sobretudo Manuel Passos, que ele descrevia passeando na Praça Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéu de grandes abas, dizendo:
— Ânimo patriotas! o Xavier aguenta-se!
Os senhores eclesiásticos da câmara riram com gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro saiu muito lisonjeado.
Depois jantou em casa do cônego Dias, e foram passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz doce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranquilidade; fumos esbranquiçados saíam dos casais, e sentiam-se os chocalhos melancólicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da Ponte, e disse, olhando em redor a paisagem suave:
— Pois senhores, parece-me que me hei-de dar bem aqui!
— Há-de-se dar regaladamente, afirmou o cônego, sorvendo o seu rapé.
Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joaneira.
As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candeeiro de petróleo, Amélia costurava.
A Sra. D. Maria da Assunção vestira-se, como nos domingos, de seda preta: o seu chinó, dum louro avermelhado, estava coberto com as rendas de um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes, solenemente pousadas no regaço, reluziam de anéis; do broche sobre o pescoço até ao cinto, um grosso grilhão de ouro caía com passadores lavrados. Conservava-se direita e cerimoniosa, com a cabeça um pouco de lado, os óculos de ouro assentes sobre o nariz acavalado: tinha no queixo um grande sinal cabeludo; e quando se falava de devoções ou de milagres dava um jeito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas. Era viúva e rica, e sofria dum catarro crônico.
— Aqui tem o senhor pároco novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joaneira.
Ela ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, comovida.
— Estas são as senhoras Gansosos, há-de ter ouvido... disse a S. Joaneira ao pároco.
Amaro cumprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam receber hóspedes. A mais velha, a Sra. D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa seca, com uma testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu xale, direita, com os braços cruzados, falava perpetuamente, numa voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se toda à Igreja.
A irmã, a Sra. D. Ana, era extremamente surda. Nunca falava, e com os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar tranquilamente os dois polegares. Nutrida, com o seu perpétuo vestido preto de riscas amarelas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e só acentuava a sua presença de vez em quando por suspiros agudos; dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papéis para caixas de doce.
Estava também a Sra. D. Josefa, a irmã do cônego Dias. Tinha a alcunha de castanha pilada. Era uma criaturinha mirrada, de linhas aduncas, pele engelhada e cor de cidra, voz sibilante; vivia num perpétuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contrações nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.
— Então passeou muito, senhor pároco? perguntou ela logo empertigando-se.
— Fomos quase até lá ao fim da estrada