O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da autoridade dum vasto entendimento:
— A religião, disse ele, pode, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio...
— Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo películas mascadas de charuto.
— Mas descer às intrigas, continuou o conde devagar, aos imbróglios... Perdoe-me meu caro amigo, mas não é dum cristão.
— Pois sou-o, senhor conde, exclamou o homem das suíças soberbas. Sou-o a valer! Mas também sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais sólidas...
— Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? Desacredita o clero, e desacredita a política.
— Mas são ou não as maiorias um princípio sagrado? Gritava rubro o das suíças, acentuando o adjetivo.
— São um principio respeitável.
— Upa! upa, excelentíssimo senhor! Upa!
O padre Amaro escutava, imóvel.
— Minha mulher há-de querer vê-lo, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou: — Entre. É o Sr. padre Amaro, Joana!
Era uma sala forrada de papel branco acetinado, com móveis estofados de casimira clara. Nos vãos das janelas, entre as cortinas de pregas largas duma fazenda adamascada cor de leite, apanhadas quase junto do chão por faixas de seda, arbustos delgados, sem flor, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia-luz fresca dava a todas aquelas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas duma cadeira uma arara empoleirada, firme num só pé negro, coçava vagarosamente, com contrações aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabelinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante dela numa cadeira baixa, com os cotovelos sobre os joelhos abertos, ocupava-se em balançar, como um pêndulo, um pince-nez de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadelinha, e com a sua mão seca e fina cheia de veias, acamava-lhe o pêlo branco como algodão.
— Como está, Sr. Amaro? — A cadela rosnou. — Quieta, Jóia. Sabe que já falei no seu negócio? Quieta, Jóia... O ministro está ali.
— Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.
— Sente-se aqui, Sr. padre Amaro.
Amaro pousou-se à beira dum fauteuil, com o seu guarda-sol na mão, — e reparou então numa senhora alta que estava de pé, junto do piano, falando com um rapaz louro.
— Que tem feito estes dias, Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?
— Está em Coimbra, casou.
— Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anéis.
Houve um silêncio. Amaro, de olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado e errante, os dedos pelos beiços.
— O Sr. padre Liset está para fora? perguntou.
— Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. — Está o mesmo sempre: muito amável, muito doce. É a alma mais virtuosa!...
— Eu prefiro o padre Félix, disse o rapaz gordo, estirando as pernas.
— Não diga isso, primo! Jesus, brada aos Céus! Pois então, o padre Liset, tão respeitável!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado...
— Pois sim, mas o padre Félix...
— Ai, nem diga isso! Que o padre Félix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais... — e com um gesto delicado procurava a palavra: — mais fina, mais distinta... Enfim, vive com outra gente. — E sorrindo para Amaro: — Pois não acha?
Amaro não conhecia o padre Félix, não se recordava do padre Liset.
— Já é velho o Sr. padre Liset, observou ao acaso.
— Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que entusiasmo!... Ai, é outra coisa! — E voltando-se para a senhora que estava junto do piano: — Pois não achas, Teresa?
— Já vou, respondeu Teresa, toda absorvida.
Amaro afirmou-se então nela. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma linha de ombros e de seio magnífica; os cabelos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a palidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Maria Antonieta; o seu vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom monótono das alvuras da sala; o colo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia aparecer através da brancura da carne; e sentia-se nas suas formas a firmeza dos mármores antigos, com o calor dum sangue rico.
Falava baixo, sorrindo, numa língua áspera que Amaro não compreendia, cerrando e abrindo o seu leque preto — e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta de um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no olho.
— Havia muita devoção na sua paróquia, Sr. Amaro? perguntava, no entanto, a condessa.
— Muita, muito boa gente.
— É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ela com um tom piedoso. — Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos cativeiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de Carcavelos, rezar na pequena capela antiga, conversar com as boas almas da aldeia! — e a sua voz tornara-se terna.
O rapaz rechonchudo ria-se:
— Ora, prima! dizia, ora, prima! — Não, ele, se o obrigassem a ouvir missa, numa capelinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não compreendia, por exemplo, a religião sem música... Era lá possível uma festa religiosa, sem uma boa voz de contralto?
— Sempre é mais bonito, disse Amaro.
— Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se daquele tenor... como se chamava ele? O Vidalti! Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglesinhos? O tantum ergo?
— Eu preferia-o no Baile de Máscaras, disse a condessa.
— Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
No entanto o rapaz louro viera apertar a mão à senhora condessa, falando-lhe baixo, muito risonho; Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe caíra uma luva, e apanhou-lha servilmente. Quando ele saiu Teresa, depois de se ter aproximado vagarosamente da janela e olhando para a rua — foi sentar-se numa causeuse com um abandono que punha em relevo a magnífica escultura do seu corpo, e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:
— Vamo-nos, João?
A condessa disse-lhe então:
— Sabes que o Sr. padre Amaro foi criado comigo em Benfica?
Amaro fez-se vermelho: sentia que Teresa pousava sobre ele os seus belos olhos dum negro úmido como o cetim preto coberto de água.
— Está na província agora? Perguntou ela, bocejando um pouco.
— Sim, minha senhora, vim há dias.
— Na aldeia? continuou ela, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.
Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guarda-sol:
— Na serra, minha senhora.
— Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Há sempre neve, diz que a igreja