— A S. Joaneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o cônego batendo no chão fortemente com a ponteira do guarda. sol.
— As línguas do mundo são venenosas, senhor cônego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois dum silêncio, acrescentou baixo: — Mas aquilo a vossa senhoria deve-lhe sair caro!
— Pois aí está, meu amigo! Imagine você que desde que o secretário-geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panela, Mendes!
— Que ela tem uma fazendita, considerou o coadjutor.
— Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as décimas, os jornais! Por isso digo eu, o pároco é uma mina. Com os seis tostões que ele der, com que eu ajudar, com alguma coisa que ela tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um alívio, Mendes.
— É um alívio, senhor cônego! repetiu o coadjutor.
Ficaram calados. A tarde descaía muito límpida; o alto céu tinha uma pálida cor azul; o ar estava imóvel. Naquele tempo o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em seco; e a água baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.
Duas vacas, guardadas por uma rapariga, apareceram então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto de um silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pelado da canga, bebiam de leve, sem ruído; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em redor com a passiva tranqüilidade dos seres fartos — e fios de água, babados, luzidios à luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho. Com a inclinação do sol a água perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da Ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepúsculo esfumado, e as nuvens cor de sangüínea e cor de laranja que anunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração muito rica.
— Bonita tarde! disse o coadjutor.
O cônego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
— Vamo-nos chegando às Ave-Marias, hem?
Quando, daí a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o cônego parou, e voltando-se para o coadjutor:
— Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joaneira ! É uma pechincha para todos.
— Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande pechincha!
E entraram na igreja, persignando-se.
II
Uma semana depois, soube-se que o novo pároco devia chegar pela diligência de Chão de Maçãs, que traz o correio à tarde; e desde as seis horas o cônego Dias e o coadjutor passeavam no Largo do Chafariz, à espera de Amaro.
Era então nos fins de Agosto. Na longa alameda macadamizada que vai junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas fiavam à porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando seus enormes ventres nus; e galinhas em redor iam picando vorazmente as imundícies esquecidas. Em redor do chafariz cheio de ruído, onde os cântaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cântaro bojudo de barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os quadris; e dois oficiais ociosos, com a farda desapertada sobre o estômago, conversavam, esperando, a ver quem viria. A diligência tardava. Quando o crepúsculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se iluminando uma a uma, com uma luz soturna, as janelas do hospital.
Já tinha anoitecido quando a diligência, com as lanternas acesas, entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz ; o caixeiro do tio Patrício partiu logo a correr para a Praça com o maço dos Diários Populares ; o tio Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao canto da boca, desatrelava, praguejando tranqüilamente; e um homem que vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéu alto e comprido capote eclesiástico, desceu cautelosamente, agarrando-se às guardas de ferro dos assentos, bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em redor.
— Oh, Amaro! gritou o cônego, que se tinha aproximado, oh ladrão!
— Oh, padre-mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, enquanto o coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mão.
Daí a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça, entre a corpulência vagarosa do cônego Dias e a figura esguia do coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube— se que era o pároco novo; e disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem. O João Bicha levava adiante um baú e um saco de chita; e como aquela hora já estava bêbedo, ia resmungando o Bendito.
Eram quase nove horas, a noite cerrara. Em redor da Praça as casas estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada saía a luz triste dos candeeiros de petróleo, entreviam-se dentro figuras sonolentas, caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar à Praça, tortuosas, tenebrosas, com um lampião mortiço, pareciam desabitadas. E no silêncio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas.
O cônego Dias ia explicando pachorrentamente ao pároco "o que lhe arranjara". Não lhe tinha procurado casa: seria necessário comprar mobília, buscar criada, despesas inumeráveis! Parecera-lhe melhor tomar— lhe quartos numa casa de hóspedes respeitável, de muito conchego — e nessas condições (e ali estava o amigo coadjutor que o podia dizer), não havia como a da S. Joaneira. Era bem arejada, muito asseio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá estado o secretário-geral e o inspetor dos estudos; e a S. Joaneira (o Mendes amigo conhecia-a bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito econômica e cheia de condescendências...
— Você está ali como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, café...
— Vamos a saber, padre-mestre: preço? disse o pároco.
— Seis tostões. Que diabo! é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...
— Uma rica saleta, comentou o coadjutor respeitosamente.
— E é longe da Sé? perguntou Amaro.
— Dois passos. Pode-se ir dizer missa de chinelos. Na casa há uma rapariga, continuou com a sua voz pausada o cônego Dias. E a filha da S. Joaneira. Rapariga de vinte e dois anos. Bonita. Sua pontinha de gênio, mas bom fundo... Aqui tem você a sua rua.
Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha Misericórdia, com um lampião lúgubre ao fundo.
— E aqui tem você o seu palácio! disse o cônego, batendo na aldraba de uma porta esguia.
No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliência, com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira; as janelas de cima, pequeninas, eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.
A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candeeiro de petróleo; e a figura da S. Joaneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, de aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pele engelhada; os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos, um colo copioso e roupas asseadas.
— Aqui tem a senhora o seu hóspede, disse o cônego subindo.
— Muita honra em receber o senhor pároco! muita honra! Há-de vir muito cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrauzinho.
Levou-o para uma sala pequena, pintada de amarelo, com um vasto canapé de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta verde.