Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Maria Cristina Francisco
Издательство: Bookwire
Серия:
Жанр произведения: Социология
Год издания: 0
isbn: 9788418575440
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a intenção (por que não?) de ser uma semente que possa ampliar a consciência sobre as entranhas em que estão embasadas a desigualdade social e econômica e a hierarquia racial, tendo como alvo o compromisso clínico dos profissionais por meio da consciência dessa realidade histórico-social e sua repercussão psíquica e corporal. Na transformação do nosso cotidiano, que possamos ser governados pelo amor solidário, pelo senso crítico, pelo conhecimento reflexivo diante de uma cultura que nos transpassa, pelo prazer consciente e pelo contentamento nas mais variadas atividades.

      7 “For who can be truly human under the weigt of opression that condemns them to a life of torment, robs them of a future, and saps their free will? Moreover, who can become truly human when they gain so much from the pain and suffering of those whom they opress and/or take advantage of?” (DEGRUY, 2017, p. IV, Prologue).

      2

      HISTÓRIA COLONIAL E ESCRAVIZAÇÃO NO BRASIL

      Ninguém ouviu

      Um soluçar de dor

      No canto do Brasil

      Um lamento triste

      Sempre ecoou

      Desde que o índio guerreiro

      Foi pro cativeiro

      E de lá cantou

      Negro entoou

      Um canto de revolta pelos ares

      No Quilombo dos Palmares

      Onde se refugiou

      Fora a luta dos Inconfidentes

      Pela quebra das correntes

      Nada adiantou

      E de guerra em paz

      De paz em guerra

      Todo o povo dessa terra

      Quando pode cantar

      Canta de dor

      E ecoa noite e dia

      É ensurdecedor

      Ai, mas que agonia

      O canto do trabalhador

      Esse canto que devia

      Ser um canto de alegria

      Soa apenas

      Como um soluçar de dor

      (Canto das Três Raças, Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro; intérprete Clara Nunes, 1976)

      Para conhecimento e compreensão da nação brasileira e de seus habitantes, faz-se necessário conhecer sua história e como ela foi constituída. Saber quais foram as primeiras percepções sobre esse Novo Mundo, a construção de um imaginário sobre a terra e os povos originários, sua formação social com a colonização europeia inicial (portuguesa, holandesa e francesa) e o regime de trabalho escravo, bem como os sistemas de governo e as transições políticas, econômicas, a mistura de culturas e costumes que influenciaram sua identidade. Considerar a hierarquização vertical nas relações raciais (indígenas, brancos e negros), suas condições subjetivas e simbólicas. E fundamentalmente o silêncio, tentativas de esquecimento, negando sua própria realidade e a amplitude das consequências desastrosas e estruturantes dessa escolha deste país na vida política, social e psíquica até os tempos atuais.

      Somos seres humanos; nossas histórias e trajetórias não podem ser esquecidas, precisam ser resgatadas para ressignificação e valorização do lugar que ocupamos na sociedade. Os negros e os indígenas são os que mais sofrem com a escolha deliberada desse esquecimento, com a desqualificação de povos, o extermínio de etnias e a não demarcação de suas terras. Negros e povos originários desta terra constroem o país até hoje com sua força, seus braços, seus conhecimentos, na luta pela preservação ambiental. Com um recente passado ainda presente, estamos todos traumatizados com a devastação provocada pela violência da colonização e do tráfico humano, e pela guerra constante pelo direito à terra e à sobrevivência.

      “Nus estão os homens e as mulheres.” [....] Foi, aliás, outro cronista, o português Pedro Gândavo, que sintetizou tal tipo de percepção, concluindo que a língua dos gentios pela costa carecia “de três letras, scilicet, não se acha nela F, nem L e nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei.”

      O suposto era que os habitantes deste Novo Mundo – que só era “novo” em relação à designação que os europeus deram a si próprios, como habitantes de um Velho Mundo – eram “outros” e apreendidos pela “falta”. Nesse caso, a diferença não era sinal de mais, e sim de menos, pois implicava a carência de costumes, de ordem e responsabilidade. Foi assim que hábitos como o canibalismo, a poligamia ou a nudez incendiaram a imaginação europeia, que migrava do Oriente para a América maravilhada com os trópicos, porém avessa a essa que seria uma nova humanidade, mas já decaída de costumes.

      [....] Em 1534, Paulo III estabelecia uma bula papal que confirmava a “humanidade” dos nativos do Novo Mundo e lhes conferia “alma”. Mas a desconfiança se mantinha e os nativos brasileiros seriam motivo para todo tipo de teoria (SCHWARCZ, 2018, p. 403-404).

      Nos diversos territórios ocupados fora da Europa, os relatos históricos foram feitos por brancos que, muitas vezes, sustentavam as versões que lhes convinham, brancos intelectuais que propagavam versões sobre o povo negro. O povo negro comporia, em sua visão, certos aspectos negativos, como inferioridade intelectual, serem feiticeiros, de beleza inferior e outros desqualificativos. Inicia-se, assim, o processo de construção de uma ideologia universal da brancura. O homem europeu, olhando para si diante do espelho, narcisicamente constrói a ideia do branco como tendo o sentido universal de humanidade, civilização, razão, desenvolvimento cultural, religião, ciência, beleza, tecnologia – correspondendo em termos psicanalíticos ao Ego e ao Superego - e uma determinada ideia do outro (o indígena, o asiático e o negro) como tendo o sentido específico, como um corpo sensualizado, instintivo, profano, emocional, selvagem – correspondendo ao Id.

      No entanto, para sermos justos, a história deveria ter três versões. Abaixo estão impressões do povo africano, apresentando no mínimo estranheza ao avistar as caravelas europeias:

      [....] Quem olhasse da praia uma caravela, bem podia tê-la, com efeito, por um grande pássaro pousado no oceano, as duas velas latinas a simularem asas.

      [....] De perto, os forasteiros não diferiam muito dos árabes e dos berberes azenegues do Saara: o mesmo cabelo liso e longo, o mesmo nariz comprido, os mesmos lábios estreitos e uma pele ainda mais desbotada. Quase tão desbotada quanto a dos albinos. A sua cor mais assemelhava à dos espíritos, que são brancos, do que à de gente viva. [....] E como cheiravam mal os que desciam dos escaleres para a praia! O branco fedia a defunto – fede a carne podre até hoje. Naquela época, quando só raramente se banhavam – e quase nunca nos barcos -, o mau odor dos portugueses devia ser acentuado pelas roupas pesadas, que, nos marinheiros e soldados, não se trocavam desde o início da viagem. As condições higiênicas nos navios eram mais do que precárias: os seus cascos tresandavam a urina, fezes, inhaca, ratos mortos e comida estragada, e