Compreendemos o racismo como uma vivência traumática. No referencial teórico, trazemos o psiquismo nas significações do corpo negro através de Frantz Omar Fanon (1925-1961), nascido na Ilha da Martinica, psiquiatra, filósofo, que trabalhou o tema da psicopatologia da colonização. Ele apresenta o pensamento de que a construção da noção de negro vem de fora da África. Nos países desse continente, não haveria razão para tal reflexão. Essa noção foi construída num determinado contexto social, enunciada em ideais que pudessem justificar o tráfico negreiro como modo de dominação e o racismo. Denuncia que o racismo rompe a relação dialética entre o Eu e o Outro e, como consequência, ocorre que quase tudo é permitido contra as pessoas negras.
Nessa condição, Fanon (2008, p. 26) dirá “[...] que o negro não é um homem. Há uma zona de não-ser [...]”. Ele foi sendo desenraizado, condenado, alojado na condição de que “[...] o negro é um homem negro” (2008, p. 26) ou seja, retirado do sentido de humanidade, constituído na ideia de inferioridade e na negação da sua cor negra, e sendo conduzido à neurose e à melancolia na modernidade, configurando uma perda de não poder ser o que ou quem é. O branco prefere ter uma imagem de si como não racista, mas tendo uma atitude oposta, e o negro olha sem se ver ou buscando um reflexo branco, comprometendo sua formação como sujeito.
Narciso. Narciso tornou-se uma metáfora para alguém que se vê a si e o seu próprio corpo, como os objetos de amor.
Narcisismo, narcisismo é o amor direcionado à imagem de si próprio; a excessiva admiração pela própria aparência; e a incapacidade de amar ou reconhecer outros, como objetos de amor.
Narcisista, narcisista é esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos, que é fixada em si própria e na reprodução de sua própria imagem, tornando todos os outros invisíveis.
Eu, eu estou rodeada de imagens que não espelham o meu corpo. Imagens de corpos brancos, com sorrisos perfeitos, sempre a olharem-se a si próprios, e a reproduzirem a sua imagem como o objeto ideal de amor.
[....] Como Fanon escreveu: ‘Tanta brancura, que me queima...’
[....] Neste narcisismo, pessoas marginalizadas dificilmente encontram imagens, símbolos ou vocabulário para narrar a sua própria história, ou para nomear o seu próprio trauma (KILOMBA, 2019a, p. 13-16).
Nessa mesma linha relativa à vivência traumática, a referência teórica se apresenta na tese defendida pela Dra. Joy Angela DeGruy, estadunidense, bacharel em Comunicação, doutora em Serviço Social e mestre em Psicologia Clínica. Ela argumenta que a devastação da escravidão, na longa extensão de tempo, desenvolveu uma lesão duradoura que surge como dor psíquica e tem forte impacto em nossa alma. Trouxe consequências psicossociais para os descendentes dos escravizados e para os descendentes dos escravizadores. Há um impacto multifacetado da escravidão na vida do negro, como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Esses ciclos de opressão deixam cicatrizes em nós mesmos e na psique coletiva, sendo transmitidos de geração em geração, roubando nossa humanidade. Aborda a questão assim:
Pois quem pode ser verdadeiramente humano sob o peso da opressão que os condena a uma vida de tormento, rouba-os de um futuro e consome seu livre arbítrio? Além disso, quem pode se tornar verdadeiramente humano quando ganha tanto com a dor e o sofrimento daqueles a quem oprimem e/ou se aproveitam? (DEGRUY, 2017, p. IV, Prólogo, tradução minha)7.
A autora relata que, apesar da violência vivida, os descendentes tendem a suavizar a memória. Para ela, estamos perigosamente mal-informados e deveríamos estudar com rigor a história e suas consequências, pois reside nesse espaço a esperança de um presente mais saudável e autoafirmativo. Como ilustração, introduz na reflexão o símbolo africano Sankofa, de um conjunto de ideogramas chamados Adinkra, que significa Volte e Pegue (san – voltar / retornar, ko – ir e fa – olhar, buscar e pegar). Acredita que devemos olhar e afirmar o passado, avançando em direção ao nosso futuro através da compreensão de quem nós éramos, acolhendo esse lugar. Defende seu pensamento com a pesquisa epigenética, considerando o quanto o meio ambiente pode influenciar na nossa genética e como os corpos podem alojar memórias do passado. Examina as características do trauma e as manifestações dos sintomas usando critérios de diagnóstico atual – Diagnostic Criteria for Post traumatic Stress Disorder – PTSD (DEGRUY, 2017, p. 98-99). Pessoas sob exposições consideradas traumáticas, diante da experiência repetida diretamente, apresentam quadros comuns a episódios vivenciados pelos negros da diáspora africana durante séculos de tortura, como ameaças de morte, de violência sexual, como também ao serem testemunhas pessoais da violência cometida.
Nessa violência traumática, como se tornar negro diante desse tsunami colonizador que se desloca por territórios, formando ondas gigantescas e provocando catástrofes diante da força da sua amplitude? Buscamos o pensamento da brasileira, baiana, psiquiatra, pesquisadora e psicanalista Neusa Santos Souza. No livro Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, ela traz um olhar fundamental sobre a experiência de ser negro numa sociedade branca, na “[...] tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange a emocionalidade” (SOUZA, 1983, p. 17). No prefácio a essa obra de Neusa Santos Souza, o psicanalista Jurandir Freire Costa diz que a autora denuncia o racismo como violência em três pontos: 1. tenta destruir a identidade do sujeito negro, internalizando o ideal do sujeito branco; 2. estabelece, por meio do preconceito de cor, uma relação persecutória do sujeito negro com o corpo; e 3. no estigma da cor, amputa a dimensão do prazer do corpo e perverte o pensamento.
Com as contribuições deste texto, tentamos principalmente desencarcerar esse corpo sequestrado por séculos. Considero uma atitude de dimensão política desconstruir essas amarras alojadas no corpo, que são os efeitos de um ideal colonizador.
De ambos os lados não estamos neutros; estamos todos envolvidos no mesmo enredo. Ao recebermos uma pessoa de cor de pele na qual se evidencia a miscigenação com descendentes do continente africano, nosso imaginário se apresenta; somos atingidos pelos nossos registros internos, pela nossa história pessoal e social. É importante olhar, ter clareza disso e não fugir desse imaginário construído, carregado de preconceitos. O inconsciente dos presentes, cliente e terapeuta / analisando e analista, estará dentro do campo psicoterapêutico. Num país racializado, as dimensões da diversidade, singularidade, especificidade e subjetividade estão memorizadas pelas experiências. O corpo do profissional deveria estar receptivo para qualificar sua escuta, compreendendo o lugar relacional que ocupa a fim de dar abertura e credibilidade ao espaço para que se desvele a presença das experiências perversas das tramas do racismo.
“Decifra-me ou te devoro”, desafio da Esfinge de Tebas: nos relatos verbais, nos gestos, nas atitudes, tentamos decifrar o enigma que devora a identidade, mina as forças e a possibilidade de sucesso daquele que vive a crueldade do racismo. Conhecer a si mesmo para não ser refém de suas emoções e crenças é premissa para libertar-se das armadilhas, do modo de reprodução e das percepções distorcidas em que estamos todos enredados. O racismo está carregado de nuances de sofisticação e perversidade construídas à medida que o tempo passa; ele se atualiza nos mais diversos ambientes, relacionamentos familiares, de amizade e profissionais, reproduzindo a hierarquia de poder, o preconceito e a discriminação.
Na prática clínica, notamos os efeitos psíquicos que atravessam o corpo da pessoa negra frente ao racismo. Na fala, sempre há um lugar de solidão, raiva, exaustão, tensão por estar alerta constantemente, por não saber o que virá no contato com outro, pela dificuldade de compartilhar com as pessoas e de receber credibilidade de colegas