Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Maria Cristina Francisco
Издательство: Bookwire
Серия:
Жанр произведения: Социология
Год издания: 0
isbn: 9788418575440
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em seu best-seller Sapiens – uma breve história da humanidade, no qual apresenta a seguinte cronologia:

      2,5 milhões - Evolução do gênero Homo na África. Primeiras ferramentas de pedra.

      2 milhões – Humanos se espalham na África para a Eurásia. Evolução de diferentes espécies humanas.

      500 mil – Surgem os neandertais na Europa e no Oriente Médio.

      300 mil – Uso cotidiano do fogo.

      200 mil – surge o Homo sapiens na África Oriental.

      70 mil – Revolução Cognitiva. Surge a linguagem ficcional. Começo da história. Os sapiens se espalham a partir da África (HARARI, 2016, p. 7).

      Na escravidão, na intenção de “domesticar”, os corpos negros, assim como ocorreu com os povos originários, passaram a se tornar mercadoria produtiva. Destituído de sua humanidade, seu corpo humano sofreu as consequências da violência traumática imposta por séculos, gerando reações emocionais e ações defensivas de sobrevivência.

      O mito da democracia racial no Brasil, de um povo conhecido e admirado por sua (suposta) cordialidade entre “os diferentes”, vem caindo por terra. O véu que encobria o preconceito e a discriminação em nossa sociedade vem sendo desvendado nos últimos tempos. A fúria do pensamento racista, as ideias destrutivas da homofobia e o desprezo por mulheres e indígenas saíram do fosso, da lama em que se escondiam, pois continuamos como nas guerras das conquistas, atuando por meio da violência e da manifestação de poder.

      Como ideologia, a formação da sociedade brasileira foi construída na oposição e na singularidade mediante uma diferença hierarquizada, além da utilização da violência como um marcador de controle, o que é reproduzido até os dias atuais. A sociedade relacional e institucional brasileira foi moldada nesse pensamento de segregação e se comporta conforme essa condição.

      Portanto, essa história não diz respeito apenas aos negros e aos indígenas, como muitos pensam. Não há unilateralidade. O racismo segrega, desmembra o corpo negro na tentativa de ele negar a si mesmo. Dita espaços que privilegiam grupos e, com isso, eleva a desigualdade social e econômica, reproduz a hierarquia racial e limita oportunidades, sem haver possibilidade de mudança. Resulta ser necessário negros e brancos brasileiros lidarem com esse desconforto no plano político e na posição subjetiva, encararem a realidade do passado e seus modos atuais. Não foram apenas os antepassados de mercadores e de escravizados que viveram diretamente essa realidade; nós todos somos impactados e implicados quando reproduzimos esse comportamento, crivando nosso olhar para o negro na condição de inferiorizado e para o branco na condição de superioridade e poder.

      É um desafio denunciar o racismo, pois muitos não desejam a mudança com relação a esse fato. No entanto, como afirma Stengel a partir do pensamento de Nelson Mandela:

      Ninguém nasce preconceituoso ou racista. Nenhum homem, ele sugere, é mal no coração. O mal é algo instalado ou ensinado aos homens pelas circunstâncias, pelo meio ambiente ou pela formação. Não é inato. O apartheid tornou os homens maus; o mal não criou o apartheid (STENGEL, 2010, p. 79).

      Atualmente é notório que as pessoas negras vivem uma sensível melhora socioeconômica, assumindo mais seu protagonismo. No entanto, essa ainda não é uma condição da maioria. Mesmo assim, elas têm procurado ajuda pessoal para tratar da sua subjetividade frente ao racismo. A maioria das pessoas brancas não trabalha essa temática racial; o corpo permanece refratário, sem expressão verbal de uma possível angústia. Experienciam uma vida cotidiana privilegiada, tão naturalizada muitas vezes, sem a consciência das relações hierarquizadas racialmente, que elas, como brancos, não se dão conta de que fazem parte do processo como raça branca.

      Essa questão está fora dos consultórios, dos debates e das agendas públicas institucionais e privadas majoritariamente, por uma série de motivos. Um deles seria a negação e o medo de os brancos não quererem se deparar com a realidade, mantendo seus privilégios, acomodados dentro de uma bolha narcísica, cegando a visão, não querendo perceber e responsabilizar-se pelas consequências dessa condição social privilegiada.

      Nesta escrita, uma das preocupações e objetivos ao tratar das relações raciais é como tocar o coração das pessoas e sensibilizar os profissionais. Tentar não cair na armadilha da vítima; buscar falar e não soar repetitiva para alguns; encontrar um lugar humanizado em que o leitor possa se impactar. Trataremos de um tema silenciado e dramático, desconfortável para alguns, alvo constante de desqualificação para outros, porém necessário, pois o racismo como violência toma formas diversas, atualizando-se dentro da sua época e lugar, nos mais diversos ambientes e regiões no mundo.

      Na questão racial, é necessário libertar o corpo do sofrimento e tensão. A dominação expressa o desejo de controle, infantilizando esse corpo na dependência e subjugação, conduzindo à humilhação e ao sentimento de vergonha. A autonomia e a libertação passam pelo resgate corporal em toda sua forma de comunicação, tratando dessa ferida que sangra, resgatando a leveza.

      No corpo do ativista/militante, nas mais diversas áreas de atuação, incansável na luta por equidade, o sofrimento é sinalizado intensamente frente à experiência e à consciência da injustiça, bem como pela falta do autocuidado, pelo manejo interno e solitário dos afetos e pela proximidade do tema na vida pessoal. É importante trazer para reflexão no ambiente ativista que “o pessoal realmente é político” (BARRY; DJORDEVIC, 2007, p. 5). Dar prioridade para a consciência e expressão emocional e espiritual, incluí-lo faz parte do resgate da autoestima e da resistência na luta política.

      Nota-se que o corpo precisa endurecer-se defensivamente e, contraditoriamente, irá fragilizar-se. Navegar as emoções torna-se arenoso, denso, tenso, diante de tamanha carga. A autonomia e a libertação passam pela necessidade de flexibilização corporal como forma de lidar com as defesas psíquicas. O racismo restringe, fixa os movimentos do corpo. Será necessário resgatar a vida que foi aprisionada. O psicoterapeuta precisa estar atento a esse cuidado na relação.

      Trazemos o trabalho corporal ligado à tomada de consciência da realidade social para promover um corpo transgressor, ativo, a fim de resgatar sua humanidade para além da cor da sua epiderme, de um corpo ainda sequestrado. E acredito que, fazendo o caminho do músculo até o córtex cerebral por meio desses recursos, poderemos promover o movimento espontâneo, fluído, e assim, trilhar um caminho possível de libertação. Entretanto, não há prazer sem consciência. O prazer como sensação de bem-estar e plenitude sem consciência é um descuido, nos sujeita à vulnerabilidade e à manipulação. Nossas decisões deveriam estar alinhadas às necessidades internas, do contrário, serão governadas pelo imediatismo, a impulsividade. Caminhos que levam a autonomia e independência estão fundados no conhecimento da realidade, na ciência da forma como se apresentam.

      Apresentadas essas condições, é importante frisar que a solidão se intensifica no silêncio. Um velho desafio se apresenta: “Lutar na vida e enfrentar a si mesmo”. Como estratégia, o Grupo Ponto de Encontro, de que tratarei especificamente mais adiante, surgiu em março de 2015, em São Paulo, com a proposta de propiciar um espaço de conversa, troca de ideias e reflexões sobre a experiência de cada um em relação à negritude, visando melhor fortalecimento da identidade, dialogando com os conceitos e técnicas da Bioenergética e da Biossíntese. É uma proposta política e subjetiva, espaço e lugar de fala.

      Na possibilidade de libertar o corpo negro de uma condenação que vem se estendendo por tempos e tempos, encontramos como referencial teórico e técnico o pensamento reichiano, no qual são consideradas as manifestações físicas frente às experiências de dor. Por meio da observação da respiração, Reich percebeu que, para suportar situações dolorosas, defensivamente desenvolvemos uma resistência, nomeada como armadura ou couraça muscular. No entanto, paradoxalmente ela pode exercer efeitos paralelos ao desejado nas relações, comprometendo a espontaneidade. Essas diversas defesas receberão classificações designadas como traços de caráter, e cada qual singularmente apresentará características energéticas corporais que se apresentam no modo de pensar, sentir e agir.