Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Maria Cristina Francisco
Издательство: Bookwire
Серия:
Жанр произведения: Социология
Год издания: 0
isbn: 9788418575440
Скачать книгу
abolição da escravatura, o Império se enfraquece e a ideia de República se fortalece. Em uma das estrofes do Hino da Proclamação da República citada abaixo, nota-se a intenção dos republicanos em “esquecer” a barbárie da escravidão. Assim, percebe-se que não houve elaboração desse processo, e o silêncio opressor, a surdez e a cegueira da visão passaram a ser estratégias defensivas de negação da realidade.

      Nós nem cremos que escravos outrora

      Tenha havido em tão nobre País...

      Hoje o rubro lampejo da aurora

      Acha irmãos, não tiranos hostis.

      Somos todos iguais! Ao futuro

      Saberemos, unidos, levar

      Nosso augusto estandarte que, puro,

      Brilha, avante, da Pátria no altar!

      (HINO DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA).

      Sem o tráfico humano, o povo antes escravizado estava envelhecendo e a mão-de-obra tornava-se insuficiente. Uma vez que a maioria da população era composta por descendentes de africanos e negros, certos intelectuais, preocupados com a construção da identidade nacional, optaram pela vinda de imigrantes europeus brancos para “melhorar” os brasileiros, com o ideal do branqueamento.

      Mas o mais impressionante sobre a população livre de cor no Brasil, em comparação com os regimes escravistas das Índias Ocidentais e dos Estados Unidos, é o seu rápido crescimento e o tamanho desse segmento populacional, que superava a população escrava total do início do século XIX. No primeiro censo nacional do Brasil, em 1872, a população livre de cor somava 4,2 milhões de pessoas, contra 1,5 milhão de escravos, o que significa que as pessoas livres de cor representavam 74% da população total não branca. A população livre de cor não só superava numericamente a população branca, mas, sozinha, representava 43% da população brasileira, que era de 10 milhões de pessoas. No fim da escravidão nos Estados Unidos, as pessoas livres de cor correspondiam a apenas 11% da população total não branca e a somente 3% da população nacional (KLEIN, 2018, p. 190).

      Segundo a professora Giralda Seyferth, em seu artigo “Colonização, Imigração e a questão social no Brasil” (2002, p. 117-149), a questão imigratória dos europeus ao Brasil estava em discussão desde 1818, na intenção de civilizar a nação com um novo modelo econômico, distinto do baseado em grandes propriedades e com diversificação da agricultura. No século XIX na Europa, difundiam-se os ideais do racismo científico, e intelectuais tentavam defender isso. Com esse propósito, passou-se a pensar a imigração com um duplo objetivo: branquear e europeizar o país. Consequentemente, com a vinda dos europeus, os negros libertos foram substituídos e preteridos pelo mercado de trabalho, empurrados para a margem da sociedade (bairros periféricos, com o início da formação das favelas). Ocorreu a exclusão de um povo que contribuiu para o desenvolvimento desta nação por séculos, sem nenhuma preocupação política de estabelecer critérios para diminuir a desigualdade entre os grupos formadores da sociedade brasileira. Na verdade, sem sequer considerar a contribuição do povo negro nessa formação.

      Com o golpe militar em 1964, instalando-se a ditadura no Brasil, as discussões sobre a questão racial foram silenciadas em boa parte. Na década de 1970, ainda durante a ditadura, surgiu a formação do Movimento Negro Unificado (MNU) contra a discriminação racial, impulsionando ações de pertencimento e denúncias de racismo. Após a ditadura, com a Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, instituiu-se o dia 20 de novembro como sendo o Dia da Consciência Negra. A data faz referência à morte de Zumbi, líder negro do Quilombo dos Palmares, como símbolo de resistência à opressão.

      Atualmente, após 131 anos, continuamos a reproduzir essa exclusão social, negando nossa formação social, negando a barbárie e a violência sofrida pelo povo escravizado e seus descendentes. Todos nós, em lugares sociais diferentes, sofremos as consequências de negar o sofrimento, vemos a reprodução do preconceito e discriminação, muitas vezes considerada naturalizada nas mortes da juventude negra (a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil), percebemos a desigualdade prevalecendo, mas certamente nenhum cidadão brasileiro sente-se seguro e livre diante de um quadro social pontuado pelo medo e pela violência como marcadores de controle.

      8 Relatos do indígena, historiador e filósofo Ailton Krenak e de outros historiadores e antropólogos no documentário Guerras do Brasil.doc., Temporada 1 - Episódio 1 – As guerras da conquista. Essa série documental detalha como o Brasil foi formado durante séculos de conflito armado, desde os primeiros conquistadores até a violência nos dias de hoje. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81091385 .

      9 Darcy Ribeiro (1922-1997), antropólogo, escritor e político brasileiro, conhecido por seu foco em relação aos indígenas e à educação no país. Suas ideias de identidade latino-americana influenciaram vários estudiosos latino-americanos posteriores. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Darcy_Ribeiro .

      10 Sobre o tema da racialização: “Defendo que a racialização do judeu é um elemento diferenciado no antissemitismo moderno, com base na “cientifização” da sociedade. Para os intelectuais do século XIX, não caberia mais uma argumentação de inferioridade racial dos homens baseada em superstições ou meramente no argumento religioso, eram necessárias comprovações científicas, com base em pesquisas, em dados adquiridos a partir da observação e dos estudos sociais e biológicos para se definir a inferioridade de um grupo social, e/ou povo, normalmente denominado de raça ou sub-raça, com o interesse de apartar e/ou exterminar o “objeto” de estudo da sociedade após a comprovação científica da impossibilidade de assimilação, ou de assimilação condicional, daquele indivíduo ou grupo numa determinada sociedade” (REHEM, 2013, p. 3).

      A dominação de povos utilizando a justificativa racista ocasionou efeitos drásticos, exterminando pessoas (Holocausto) e povos indígenas, e causando a desestruturação social no continente africano. [...]“Ao estimular guerras e a expansão territorial entre reinos rivais, o tráfico gerou um quadro de instabilidade sistêmica nas sociedades africanas. Ao expor os africanos a redes de comércio responsáveis pela introdução de armas, têxteis e álcool, alimentou-se a escravização por débito. Através de guerras, sequestros ou métodos judiciais, produziu escravização crônica e difusa” (FERREIRA, 2018, p. 53).

      11 Podemos ver ilustrações das condições desses navios registradas nos anexos do capítulo “Demografia da escravidão”, de Klein (2018, p. 195-196).

      12 Isabel Löfgren (Estocolmo, Suécia, 1975) e Patrícia Gouvêa (Rio de Janeiro, Brasil, 1973) são artistas visuais que criaram o projeto de exposição e pesquisa Mãe Preta, originalmente de 2015 (LÖFGREN; GOUVÊA, 2018, p. 7-12). Nesse trabalho, narram a complexidade das relações da maternidade no período da escravidão e que se perpetua com nova roupagem na contemporaneidade.

      13 Esse imaginário sobre a mulher negra ainda permanece; elas são vistas como mais resistentes à dor e, dessa maneira, julga-se que