Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Maria Cristina Francisco
Издательство: Bookwire
Серия:
Жанр произведения: Социология
Год издания: 0
isbn: 9788418575440
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e compreensível aspectos essenciais sobre as ordens do amor e da vida” (NEUHAUSER, 2006, primeira orelha da capa).

      APRESENTAÇÃO

      Sempre é um desafio escrever. Neste caso, quem escreve é uma pessoa que se tornou negra e fala de um lugar da sua própria vivência. A experiência não está pautada apenas no setting terapêutico e na teoria, mas também em uma experiência viva cotidiana. Dessa maneira, a voz não está terceirizada - há apropriação do tema e da fala.

      À medida que me dedicava à escrita, fui percebendo que realmente não tenho a experiência pessoal (nem poderia tê-la) do que foi viver os momentos de terror de ser capturado e impedido de ser e viver sua própria vida. Aqui me refiro ao processo de escravização do povo negro. No entanto, posso dizer que sei do sofrimento que se perpetua até hoje nos descendentes, pela negação da sua humanidade, pelas oportunidades de trabalho restritas, pela imposição de uma condição subalterna ou por serem posicionados fora do centro de decisões no espaço organizacional, ou ainda por viverem sob a tensão da violência policial e da humilhação.

      Dar visibilidade a essa realidade silenciada é ter a intenção de modificar uma reprodução de comportamento, de pensamento, mesmo sendo difícil fazer tal enfrentamento, pois todos nós nos esquivamos desse labirinto de emoções, de culpa, vergonha, raiva, medo. Ao escrever você visita suas entranhas, seus mais profundos sentimentos, e no meu caso, tornou-se uma busca por mudança, ou seja, por dar notoriedade ao olhar e à voz, lugares julgadores diante da cor da epiderme, atitude que pode determinar a subserviência de um corpo diante do outro.

      Esses olhares e vozes opressores podem atingir violentamente a espontaneidade. Vivemos, no aspecto social, um Brasil de raças e de total desigualdade. Essa desigualdade gera intenso sofrimento físico e emocional para o indivíduo e para a sociedade em toda a sua complexidade. Uma sociedade marcada em sua formação pela invasão e opressão da colonização e da escravidão por mais de três séculos. Com a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, não houve políticas públicas de reparação desse injusto sistema social de produção, e sofremos o peso dessa realidade e suas consequências até os dias atuais: violência e criminalidade, desemprego, educação precária, falta de acesso a serviços públicos de qualidade, preconceito, discriminação, com sequelas na vida psíquica e corporal.

      Além desse grupo, também acompanho como psicoterapeuta pessoas brancas, que não trazem para o espaço terapêutico especificamente a problemática racial da pessoa negra, mas também sofrem com a violência de um mundo desigual. Não percebem por indiferença, por conforto num mundo privilegiado, por falta de interesse, por não enxergarem que a condição do outro é desigual e o quanto a atitude preconceituosa e discriminatória reproduz essa desigualdade. Nunca pensaram em sua condição de branco, pois está naturalizada como uma suposta normalidade. O diferente é o outro, não sou eu. Não há consciência do quanto estamos todos implicados na hierarquia racial.

      Essa negação tem consequências: a invisibilidade branca e a invisibilidade negra. Ambas diferentes no contexto e no contato social - para um, o privilégio, e para o outro, a exclusão. Em virtude dessa implicação de todas as raças em nossa formação social, uso a expressão “relações raciais”. Toda essa movimentação relacional, direcionada pela invisibilidade, fará morada no corpo, reproduzindo angústia e dor, certamente muito mais para quem está depreciado no ambiente, na sociedade.

      Por ser analista de Bioenergética e de Biossíntese

      - práticas psicoterapêuticas que incluem a observação do corpo, sua forma de agir, exercícios, respiração e a verbalização -, não poderia iniciar de outra maneira senão apresentando esse corpo. O preconceito e a discriminação vividos ao longo da vida foram-me conduzindo à consciência racial, porém, frisada na inferioridade, constituindo-me negra nesse lugar. Essa conscientização das emoções emergidas da violência do racismo tornaram-se mais claras durante minha formação, através dos exercícios corporais no Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo (IABSP).

      1 Estar entre pares oferece um lugar de pertencimento; o que se fala não causa estranhamento.

      2 Ter a oportunidade de estar em contato com conhecimento histórico, social, político e psíquico sobre o tema.

      3 Participar ativa e politicamente de várias atividades.

      Nos anos 1990, integrando o quadro de funcionários da Prefeitura Municipal de São Paulo como psicóloga, coordenando um grupo psicoterapêutico com pessoas portadoras do vírus HIV, notamos o quanto era importante a troca de experiências entre iguais por resgatar a humanidade promovida pela identificação, antes fragilizada pelo estigma da doença, pela solidão surgida da discriminação nas relações e pela segregação social diante do medo da revelação de um diagnóstico.

      Os exercícios corporais bioenergéticos e os de biossíntese levavam ao resgate do corpo estigmatizado na prática de um dos principais conceitos utilizado em ambas as escolas, o grounding, favorecendo a consciência e a importância de estar conectado consigo, com sua trajetória de vida. Ser acolhido e visibilizado propiciou o resgate da beleza do corpo, mesmo modificado pelos efeitos colaterais dos antirretrovirais. Uma vez conscientes da própria existência humana, estávamos chegando a uma atitude de bem-estar e promovendo a adesão ao tratamento. Com o corpo subjetivo fortalecido, os pacientes puderam ampliar horizontes, traçar novos projetos, antes marcados pela finitude iminente a que o HIV os condicionaria.

      No consultório, trabalhando com pessoas negras, independente dos vários tons de colorização de pele, eu notava certa similaridade da vivência com os portadores do HIV - de um lado, um corpo marcado pelo estigma de um vírus, e de outro, pela cor da pele. Corpo estigmatizado, discriminado, invadido, segregado, ocasionando a mesma dor da solidão e do silêncio gerador de sofrimento psíquico. A desconfiança na relação era o sentimento presente; resgatar o vínculo relacional tornou-se um desafio, vínculo a ser fortalecido com a frequência do contato, com a possibilidade de dar voz à história pessoal e de vivenciar o olhar acolhedor do outro à sua volta.

      Para conhecer a enfermidade psíquica, em se tratando do campo psicológico, deve-se conhecer a história que a condicionou. Assim é que a história da formação social no Brasil é apresentada neste texto. Um país desde o início brutalizado pela violência dos invasores/colonizadores e pelo roubo de sua natureza, exterminando os povos originários desta terra, seus verdadeiros donos, e posteriormente sendo habitada por pessoas traficadas da África com a clara intenção de conquista pela exploração e domínio neste local tropical, rico e bonito por sua natureza, constantemente violada.