Um decreto presidencial é ato normativo cabível para a disciplina jurídica de exercício de uma competência discricionária da Administração Pública. Disso poucos duvidam84 e já é discussão pacificada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal85. Portanto, é perfeitamente possível que em substituição ou em complementação ao Decreto 7.781/2012 seja editado novo decreto presidencial trazendo nova disciplina jurídica ao instituto da autorização do no setor de aeródromos públicos e, assim, disciplinando como esses aeródromos poderiam funcionar para receber voos comerciais e adotando os cânones delineados neste trabalho.
Contudo, o mesmo ato normativo poderia ser editado pela ANAC, o que seria, a meu ver, preferível à luz da estrutura do ordenamento setorial. Isso ocorre, pois, como é notório, ao se constituir uma autoridade reguladora independente para um determinado setor da economia, cria no Direito um sistema de administração policêntrica, eis que é criado um centro de poder autônomo não submetido a qualquer vínculo hierárquico ao Chefe do Poder Executivo e comprometido, por derivação direta da lei, com o funcionamento adequado de um setor da economia. Essas entidades são, na precisa definição de Sabino Cassese, órgãos estatais, mas não órgãos de governo86.
Nesse passo, havendo, no setor de aviação civil, uma autoridade reguladora independente, incumbida de formular uma política setorial e assegurar o adequado funcionamento do mercado, parece-me evidente que deveria ser de sua ação a normatização da autorização para a implantação de aeródromos públicos. Considerando-se ser esse ato normativo a expressão de uma discricionariedade essencialmente técnica87, deveria, idealmente, caber à autoridade reguladora competente – detentora da capacitação técnica no caso – editar um ato capaz de equilibrar todos os interesses existentes no setor regulado, balanceando as necessidades e obrigações do serviço público e a livre iniciativa e a livre concorrência no setor.
Portanto, com fundamento nos incisos XXI e XLVI da Lei 11.182/2005, parece-me evidente que caberia à ANAC, após o necessário processo administrativo, no âmbito do qual sejam realizadas audiências e consultas públicas, nos termos dos artigos 26 a 28 da mesma Lei 11.182/2005, editar ato normativo disciplinador do instituto da autorização na atividade de exploração de aeródromos públicos. Trata-se do mecanismo mais condizente com a estrutura normativa setorial que se inicia no Texto Constitucional e percorre caminho até ato normativo da ANAC.
Nesses quadrantes, parece-me inquestionável poder concluir este subtópico afirmando que, hoje, a autorização ora delineada para aeroportos privados é inviável, mas que, com simples alteração do Decreto 7.781/2012 e edição de novo ato normativo será ela plenamente possível, nos moldes ora propostos. E esse ato normativo poderá ser tanto decreto do Presidente da República, editado com fundamento no artigo 84 da Constituição Federal, quanto regulamento editado pela ANAC, nos termos da Lei 11.182/2005, parecendo-me a segunda possibilidade mais coerente à luz do ordenamento setorial.
IV. AEROPORTOS PRIVADOS E EXPLORAÇÃO DE MERCADO
Sem qualquer prejuízo de qualquer das afirmações precedentes e em complemento a elas, parece-me imprescindível tecer breves comentários acerca da estrutura de mercado a ser implementada, caso um aeródromo público explorado por meio de autorização venha a ser destinado à aviação comercial, ademais da aviação privada.
Isso ocorre, pois há uma série de dúvidas que emergem da criação de novo regime jurídico de exploração de atividade regulada, como, por exemplo, o regime tarifário, o regime de bens e o regime de concorrência com os aeródromos públicos sujeitos ao regime de serviço público.
Ao que me parece, o ponto de partida dessa discussão encontra-se em uma premissa fundamental: a assimetria regulatória. Ou seja, todas as discussões que seguem têm que obedecer à premissa de que a inauguração do regime de autorização para a atividade aeroportuária ampla (englobando a aviação comercial, portanto) implicará a coexistência de dois regimes jurídicos distintos de exploração da atividade: o regime de serviço público e o regime privado, em clara competição.
Como já expus no tópico III deste trabalho, a assimetria regulatória não é qualquer novidade no Direito Público brasileiro, existindo nos setores de telecomunicações, energia elétrica, portos e transportes ferroviário e rodoviário. Significa, como já dito, a submissão a níveis distintos de regulação agentes que exploram atividades distintas. Trata-se, como se afigura evidente, de decorrência lógica do crivo da proporcionalidade.
Parece-me aqui, para deslinde da questão, claramente aplicável a teoria da complementariedade dos instrumentos regulatórios, muito bem formulada na doutrina de Christian Koenig e Winfried Rasbach, segundo a qual a proporcionalidade na intervenção no direito da livre iniciativa dos agentes econômicos se dá pela necessidade de dosimetria na intensidade do uso dos instrumentos regulatórios, buscando-se um equilíbrio. Segundo os autores:
a acumulação dos instrumentos consequente da complementariedade dos instrumentos regulatórios significa para o dever de efetividade dos direitos fundamentais que cada instrumento regulatório deve ser previamente mensurado: quanto mais intensamente um instrumento regulatório restringir os direitos fundamentais dos operadores de rede, mais estará a aplicabilidade dos demais instrumentos regulatórios sujeita à comprovação de compatibilidade com os direitos fundamentais88.
Assim, parece-me claro que deverá haver complementariedade e equilíbrio entre os instrumentos regulatórios existentes no setor regulado de aviação civil, estabelecendo-se balanceamento de direitos e obrigações entre as infraestruturas sujeitas ao regime de serviço público e aquelas sujeitas ao regime totalmente privada.
Nesse passo, se há intensa restrição do direito fundamental de livre iniciativa dos agentes sujeitos ao regime de serviço público, em função das obrigações que lhe são impostas e das finalidades que têm que alcançar, é-lhes também assegurada considerável proteção em sua atividade. Portanto, a restrição do direito de livre iniciativa decorrentes do controle tarifário, das obrigações de manutenção de determinados níveis de serviço e de continuidade e da estrita regulação incidente sobre a atividade é contrabalanceada pela garantia de patamares mínimos de remuneração (v.g., tarifa capaz de garantir o equilíbrio econômico-financeiro da operação), garantia de amortização do investimento realizado e, às vezes, certas posições vantajosas no mercado.
Em sentido contrário, os agentes que venham a atuar em regime de direito privado não terão as mesmas obrigações impostas aos agentes sujeitos ao regime de serviço público. Gozarão de liberdade tarifária, liberdade empresarial e sujeição a níveis inferiores de regulação. Contudo, gozarão também de menor nível de proteção e maior exposição a riscos do respectivo mercado, eis que não terão garantia de equilíbrio econômico-financeiro, não terão garantia de amortização de investimentos e não terão qualquer proteção de mercado.89
Nesse contexto, caberá à regulação setorial encontrar um equilíbrio entre as obrigações e os direitos assegurados aos aeródromos explorados em regime de serviço público e a liberdade de ação dos aeródromos explorados em regime privado de autorização. Haverá clara situação de concorrência entre eles, porém ao mesmo tempo em que o regime de serviço público poderá ser um óbice à competitividade, será ele uma garantia que a assegurará na disputa de mercado com agentes sujeitos ao regime de mercado.
Exatamente nesse sentido, aliás, já decidiu o Tribunal de Contas da União, como se pode extrair o seguinte trecho de acórdão exarado com relação ao setor portuário:
17. A questão é saber se a legislação poderia fazê-lo de maneira constitucional. Nesse sentido, parece-me irrelevante o percentual entre carga própria e de terceiros. Dito de outra forma: a modalidade de terminais portuários de uso misto seria inconstitucional, porquanto a carga de terceiros, qualquer que seja seu volume, caracterizaria serviço público, devendo ser prestada por concessionário escolhido em licitação pública?