Dizendo com outras palavras, é equivocado afirmar que a lei (em sentido estrito) veda que haja aeródromos públicos operados por meio de autorização em regime de competição com aeródromos públicos operados por meio de concessão, ou diretamente pelo Poder Público (hipóteses arroladas nos incisos I a III do artigo em discussão). O simples fato de o Código Brasileiro de Aeronáutica contemplar concessão e autorização como títulos habilitantes de aeródromos públicos já é suficiente para atestar que a competição mencionada não apenas é permitida, como também é existente.
O que ocorre, contudo, é que pode haver (como, realmente, há), restrições quanto ao âmbito de materialização dessa competição. É dizer, que há competição é inegável. Entretanto, a abrangência dessa competição é que pode ser limitada por atos infralegais que, porventura, venha a complementar o Código Brasileiro de Aeronáutica.
Essa constatação aparece de forma evidente no conteúdo do Decreto 7.781/2012, que regulamenta o regime de autorização para a exploração de aeródromos públicos. Nos termos de referido decreto, os aeródromos públicos explorados por meio de autorização somente podem ser voltados para serviços privados de aviação, excluindo-se, portanto, a possibilidade de recebimento de voos da aviação comercial (artigo 2º)64.
Assim é que, de lege lata, a concorrência entre aeródromos públicos operados no regime de serviço público (i.e., por meio de concessão ou diretamente pelo Poder Público) é limitada quanto ao respectivo mercado relevante, pois que somente pode existir em relação aos voos não operados no regime de serviço público. Portanto, é claro e evidente que há competição entre aeródromos concedidos e autorizados, mas essa competição somente se dá em relação aos voos não operados em regime de serviço público. Quando se tratar dos serviços públicos de transporte aéreo de passageiros, há uma reserva de mercado para os aeródromos públicos operados no regime de serviço público.
Nesse diapasão, é possível concluir-se que (i) é possível a construção e a exploração de um aeroporto privado no regime de autorização, com base em bens privados e com iniciativa exclusivamente privada, sem qualquer necessidade de iniciativa por parte do Poder Público, e (ii) a exploração de referido aeroporto em regime de autorização, segundo o regime atualmente vigente, impossibilita sua abertura para a aviação comercial, não lhe sendo possível, pois, oferecer os serviços de operação aeroportuária para qualquer voo operador no regime de serviço público.
Por conseguinte, no regime atualmente vigente do Código Brasileiro de Aeronáutica, a existência de aeroportos privados autorizados é possível e não encontra, nos lindes de referida lei, limitações. Contudo, em cotejo com o disposto no Decreto 7.871/2012, tem-se que o mercado relevante de atuação de tal aeroporto seria muito restrito, em comparação aos demais aeródromos públicos, já que somente poderia servir a receber voos de serviços privados de aviação.
Não obstante, o ponto mais relevante de tudo o quanto já exposto neste tópico reside no fato de que a Constituição Federal e a lei parlamentar não vedam a existência de aeródromos públicos explorados por autorização e concorrentes a outros aeródromos explorados no regime de serviço público. Muito ao contrário, aliás. O quanto já tive a oportunidade de expor em referência ao conteúdo do artigo 21, XII, da Constituição Federal, e do artigo 36 do Código Brasileiro de Aeronáutica deixa evidente que essa competição não apenas é possível, quanto deve ser desejável em função das potencialidades que podem advir da livre iniciativa e da livre concorrência.
Apenas se poderia argumentar pela impossibilidade de competição entre aeródromos explorados por autorização e aeródromos explorados por concessão, caso os primeiros fossem um óbice a que os segundos cumprissem suas finalidades de serviço público65. Havendo, dentro do respectivo mercado relevante, capacidade para concorrência sem prejuízo às obrigações de serviço público, é perfeitamente possível que haja a competição mencionada.
Daí chego à conclusão clara de que, nos casos de mercados relevantes já devidamente atendidos a contento por infraestruturas sujeitas ao regime de serviço público, conforme seja demonstrada saturação em estudos técnicos pertinentes, não há qualquer óbice para que aeroportos privados entrem em regime de competição com os demais aeródromos públicos existentes operantes no regime de serviço público. E razão para tanto é muito simples: a entrada de uma infraestrutura competidora não porá em risco as finalidades de serviço público.
Muito ao contrário, aliás. Com a saturação do mercado, a existência de uma infraestrutura privada competidora estimulará a necessidade de busca pela eficiência e pelo aprimoramento na prestação dos respectivos serviços, com claros ganhos para os usuários. A manutenção de um regime restritivo à concorrência em um cenário de saturação de mercado é desencontrada dos interesses dos utentes, haja vista que preserva mercado inadvertidamente e inibe melhorias, inovações e busca pela eficiência.
Portanto, parece-me evidente que, dada a realidade dos serviços aeroportuários em regiões cujas infraestruturas sujeitas ao regime de serviço público estejam saturadas, é perfeitamente possível a alteração do regime do Decreto 7.781/2012 e a criação de um regime autorizatório capaz de inserir um aeroporto privado como infraestrutura competidora. Essa alteração, aliás, não apenas seria possível, como determinada pelo conteúdo da Ordem Econômica Constitucional.
Diante disso, parece-me fundamental, neste momento, dissertar sobre os contornos de uma nova autorização aeroportuária a ser criada de lege ferenda para permitir a implantação de aeroportos privados. Para tanto, dividirei a minha análise nos seguintes temas: (i) regime de outorga da nova autorização; (ii) regime de estabilidade da autorização; (iii) regime de encerramento da autorização; e (iv) regime normativo da autorização.
1. REGIME DE OUTORGA DA NOVA AUTORIZAÇÃO
Como tive a oportunidade de dissertar no tópico III deste trabalho, o campo de aplicação das autorizações, nos quadrantes do inciso XII do artigo 21 da Constituição Federal, é demasiadamente diversificado. Por isso, não é possível estabelecer-se um padrão para o regime de outorga de autorizações para a exploração das atividades lá desenhadas.
Como regra geral, tem-se que a autorização é o ato que permite a realização de uma determinada atividade. Trata-se do efeito de legalização bem mencionado por Rolf Stober66, na medida em que o empreendimento da atividade é ilegal sem autorização. Por via de consequência, a autorização aplica-se a atividade de iniciativa privada, cujo exercício demanda uma aprovação prévia por parte do Estado.
Essa concepção geral poderia trazer à baila duas implicações obrigatórias: a outorga da autorização é sempre ato discricionário por parte da Administração e a autorização é outorgada sem qualquer forma de procedimento competitivo ou excludente.
Ambas as determinações, contudo, estão erradas.
Em primeiro lugar, porque a discricionariedade, entendida como livre e ilimitada (i.e., completa capacidade do administrador público de aferir a conveniência e oportunidade do caso concreto para determinar se outorga ou não a autorização), é violadora do Princípio da Livre Iniciativa. Como se pode claramente depreender do inciso XIII do artigo 5º e do parágrafo único do artigo 170, ambos da Constituição Federal, a livre iniciativa somente pode ser limitada por critérios muito objetivos, sempre proporcionais para garantir a realização