Algo despertou dentro dela, como se tivesse cruzado uma linha invisível, um ponto crítico. Ela sentiu, pela primeira vez em sua vida, que ela não precisava de mais ninguém. Tudo o que ela precisava era ela mesma. Ao invés de ter medo do momento, ela estava o apreciava.
Scarlet se sentiu tomada por raiva, que vinha de seus pés, atravessava seu corpo e chegava até o topo de sua cabeça. Era uma emoção elétrica que ela não conhecia, que ela nunca havia sentido antes. Ela não queria mais fugir dos garotos. Tampouco queria que eles fugissem.
Agora, ela queria vingança.
Os garotos ficaram parados, olhando em choque. Scarlet atacou. Tudo aconteceu tão rápido que ela mal conseguiu processar. Seus reflexos eram muito mais rápidos que o deles, como se eles estivessem se movendo em câmera lenta.
Scarlet saltou no ar, mais alto que nunca, e chutou o garoto, que estava no meio, atingindo seu peito com seus dois pés. Ela o mandou pelos ares, como se fosse uma bala cruzando o beco, até ele se chocar contra uma parede e desabar.
Antes que os outros pudessem reagir, ela virou e deu cotovelada no rosto de um, depois girou e chutou e o outro no esterno. Ambos caíram, inconscientes.
Scarlet ficou ali parada, com Ruth, recuperando o fôlego. Ela olhou a sua volta e viu os cinco garotos espalhados pelo chão a sua volta. E então, percebeu: ela havia ganhado.
Ela não era mais a Scarlet que ela conhecia.
Scarlet vagou, com Ruth ao seu lado, pelas ruas por horas, tentando permanecer o mais longe possível daqueles garotos. Ela virou esquina após esquina naquele calor, se perdendo naquele labirinto de vielas da antiga cidade de Jerusalém. O sol do meio dia judiava dela e ela estava começando a delirar por causa disso; a falta de comida e água também não estava ajudando. Enquanto serpenteavam pela multidão, ela via que Ruth estava ofegante ao seu lado, ela também estava sofrendo.
Uma criança passou por Ruth e tocou em suas costas, querendo brincar, mas fora com muita força. Ruth se virou e foi para cima dela, rosnando e exibindo seus dentes. A criança gritou, chorou, e então fugiu. Era estranho Ruth se comportar dessa maneira; normalmente, ela era muito tolerante. Mas parecia que o calor e a fome a estavam afetando demais. Ela também estava canalizando a raiva e frustração de Scarlet.
Por mais que tentasse, Scarlet não sabia como se livrar dos seus sentimentos residuais de raiva. Era como se algo dentro dela tivesse sido desencadeado, e ela não podia contê-lo de volta. Ela sentiu suas veias latejando, a raiva pulsando e, quando ela passou pelos vendedores, que exibiam todo o tipo de comida que ela e Ruth não podiam pagar, a raiva aumentava. Ela também estava começando a perceber que o que ela estava sentindo, aquelas dores intensas de fome, não era apenas uma fome típica. Era outra coisa, ela percebeu. Algo mais profundo, mais primitivo. Ela não quer apenas comida. Ela queria sangue. Ela precisava se alimentar.
Scarlet não sabia o que estava acontecendo com ela e ela não sabia como lidar com isto. Ela sentiu o cheiro de carne e abriu caminho na multidão, procurando por ela. Ruth a acompanhava, bem ao seu lado.
Scarlet acotovelava as pessoas enquanto seguia em frete e, ao fazê-lo, um homem na multidão se ressentiu e a empurrou:
“Ei, garota, olhe por onde anda!” ele retrucou.
Sem mesmo pensar, Scarlet se virou e empurrou o homem. Ele tinha mais que o dobro de seu tamanho mas, mesmo assim, foi atirado para trás e acabou batendo em várias barracas de frutas quando caiu no chão.
Ele se levantou, chocado, olhou para Scarlet e se perguntou como uma menina tão pequena poderia subjuga-lo daquele jeito. Então, aterrorizado, ele sabiamente se virou e saiu correndo.
O vendedor franziu o cenho para Scarlet, sentindo que ela causaria problemas.
“Você quer carne?” ele disse rispidamente. Você tem dinheiro para pagar?”
Mas Ruth não se conteve. Ela avançou e afundou suas presas no enorme pedaço de carne, arrancou uma mordida e engoliu tudo. Antes que alguém pudesse fazer alguma coisa, ela pulou de novo, visando agora outro pedaço.
Desta vez, o fornecedor foi dar um golpe abaixando sua mão, com toda a força, com o objetivo de bater Ruth no nariz.
Mas Scarlet sentiu esse movimento. Na verdade, algo novo estava acontecendo com seu senso de velocidade, seu senso de tempo. Quando a mão do vendedor começou a descer, Scarlet viu sua própria mão se erguendo, sem seu controle, e agarrando o pulso do vendedor antes que ele tocasse em Ruth.
O vendedor olhou para Scarlet, seus olhos estavam arregalados, estava chocado que uma pequena garota poderia ter um aperto tão forte. Scarlet comprimiu o pulso do homem, e apertou ainda com mais força, até o braço dele começar a tremer. Ela se viu encarando-o de cara feia, incapaz de controlar sua raiva.
“Não se atreva a tocar no meu lobo,” Scarlet rosnou para o homem.
“Eu… sinto muito,” o homem disse, tremendo de dor, seus olhos estavam arregalados de medo.
Por fim, Scarlet soltou o aperto e correu para fora da barraca, Ruth ao seu lado. Enquanto ela se apressava para correr o mais rápido que podia, ouviu um assobio atrás e, em seguida, gritos frenéticos dos guardas que estavam em seu encalço.
“Vamos, Ruth!” Scarlet disse, e as duas se apressaram para descer o corredor e se perder no meio da multidão. Pelo menos, Ruth havia comido algo.
Mas a fome de Scarlet era esmagadora e ela não sabia se poderia contê-la por mais tempo. Não sabia o que estava acontecendo com ela, mas enquanto caminhavam rua após rua, ela se viu olhando para a garganta das pessoas. Ela olhava atentamente para suas veias, via o sangue pulsando. E encontrou-se lambendo os lábios, querendo – precisando – cravar seus dentes neles. Ela ansiava pela ideia de beber sangue, e imaginou como seria a sensação de sangue descendo pela sua garganta. Ela não entendia. Ela não era mais humana? Estava se tornando um animal selvagem?
Scarlet não queria ferir ninguém. Racionalmente, ela tentou se conter.
Mas, fisicamente, algo estava tomando conta dela. E ia subindo, desde seus dedos do pé, passando pelas pernas, pelo seu torso, até o topo de sua cabeça e pontas de seus dedos. Era um desejo. Um desejo insaciável. Seus pensamentos a atormentavam, eles lhe diziam o que pensar, como agir.
De repente, Scarlet detectou algo: ao longe, em algum lugar atrás dela, um grupo de soldados romanos corriam atrás dela. Sua nova audição, hipersensível a alertou com o som de suas sandálias batendo na pedra. Ela já sabia deles, mesmo eles estando a quarteirões de distância.
O som de suas sandálias batendo nas pedras só irritava a ainda mais; o ruído se misturava em sua cabeça com o som dos gritos dos vendedores, com as crianças rindo e os cães latindo… Tudo estava ficando demais para ela. Sua audição estava se tornando muito aguçada, e ela estava ficando muito irritada com a cacofonia de ruído. O sol também parecia mais forte, como se estivesse atingindo apenas ela. Era demais. Ela sentia como se estivesse sob o microscópio do mundo e estava prestes a explodir.
De repente, Scarlet se inclinou para trás, transbordando de raiva, e teve uma sensação nova em seus dentes. Ela sentiu seus dois dentes incisivos expandirem, ficarem maiores, presas afiadas saindo, projetando de sua gengiva. Ela mal sabia o que era aquele sentimento, mas sabia que estava mudando, se transformando em algo que mal podia reconhecer nem controlar. Em seguida, ela viu um homem gordo, bêbado, tropeçando pelo beco. Scarlet sabia que ela ou precisava se alimentar ou iria morrer. E algo dentro dela queria sobreviver.
Scarlet se ouviu rosnando e ficou chocada. Era um som tão primitivo, que ela ficou surpresa. Ela sentia como se estivesse fora de seu corpo quando ela deu um saltou no ar, em direção ao homem. Ela assistiu em câmera lenta quando ele se virou para ela, os olhos arregalados de medo. Ela sentiu seus dois dentes da frente afundando em sua carne, nas veias em sua garganta. E, um momento depois, ela sentiu seu sangue quente descendo por sua garganta, enchendo suas veias.
Ela