Confrontadas com este tipo de políticas, as Ordens de Santiago, de Cristo e de Avis fizeram um esforço de adaptação ao nível da sua reordenação interna e da inventariação do seu património. Com efeito, todas elas redigiram textos normativos nos anos de 1326-1327.67 Cabe, no entanto, questionar se estes textos resultam apenas da iniciativa dos ramos portugueses destas Ordens Militares, forçadas a isso pela monarquia (tanto mais que, em 1325, sobe ao trono D. Afonso IV, podendo as Ordens ter encontrado o momento oportuno para tentar clarificar a situação), ou se são o resultado de instruções dadas por Calatrava (tanto mais que, em dezembro de 1326, Calatrava visita Montesa para aprovar as suas primeiras definições).
CONCLUSÃO
Do ponto de vista cronológico, em Portugal a conjuntura que leva à criação da Ordem de Cristo manifesta-se sobretudo entre 1307 e 1317. Desta altura são conhecidos diversos documentos que sugerem que se trata de uma década de notória interferência régia sobre os bens do Templo, seguida da fase de criação da Ordem de Cristo, no ano de 1319, e da sua organização funcional, despoletada de imediato, e que culminaria na promulgação das Ordenações de 1326. O processo de transição do património da Ordem do Templo para a coroa e, por fim, para a Ordem de Cristo foi bastante lento e desenvolveu-se em três etapas até se estabilizar a base patrimonial desta nova instituição.
A coincidência cronológica com o que se estava a passar além da fronteira é sugestiva e conduz à hipótese de o rei de Portugal ter informação bastante atualizada, ou até privilegiada, no que toca a esta matéria. Em primeiro lugar, e ainda antes de Filipe IV ter decretado a prisão dos Templários em 13 de outubro de 1307,68 começou em Portugal um processo de confiscação da propriedade que estava na posse dos freires portugueses, cujo primeiro documento que se conhece é de 18 de agosto de 1307.69 Embora a curta distância, nesta fase inicial, D. Dinis age com precocidade quando comparado com o seu cunhado, Jaime II de Aragão, que em novembro de 1307 subscreve medida semelhante no que toca aos bens que os freires possuíam no seu reino.70 Em segundo lugar, assim que se tornaram públicas as decisões do concílio de Vienne em 1312, começaram também as inquirições régias sobre os bens dos Templários com o objetivo de deitar mão a essa propriedade.
Com a instalação da casa conventual da Ordem de Cristo perto da foz do rio Guadiana dava-se sinal de que se estava a desenhar uma estratégia de expansão marítima (suportada no plano ideológico pela cruzada tardia), da qual dependeria uma boa parte da projeção externa da soberania portuguesa e a qual o monarca não tinha capacidade de desenvolver sem o contributo destas Ordens Militares.
A Ordem de Cristo é uma síntese, diríamos, quase perfeita à luz da conjuntura em que foi instituída. Na perspetiva da crítica histórica, representa uma solução pouco inovadora e geradora de algum incómodo para a Coroa. Resultou, pois, da incapacidade de garantir a necessária aprovação do Papado em relação ao destino a dar aos bens que pertenciam à Igreja, por via da Ordem do Templo, implementando outra alternativa que ficasse à margem do enquadramento institucional de uma Ordem Militar. Ou seja, sabendo de antemão que os bens da Ordem do Templo nunca poderiam sair do círculo da Igreja, o rei limitou-se a decalcar um modelo preexistente, sugerindo a criação de uma nova Ordem Militar (tenha-se também em consideração o exemplo da Ordem de Montesa, instituída em 10 de junho de 1317),71 embora com um vínculo institucional à Ordem de Calatrava, dependente do rei de Castela, o que encerra uma contradição significativa. Para mitigar esta influência, que poderia minimizar a supremacia do rei de Portugal, estipularam-se duas cláusulas fundamentais: a Ordem ficava submetida à correição e visitação do Abade de Alcobaça, mosteiro português de Cister,72 e o Mestre de Cristo devia fidelidade ao rei de Portugal.73 Na perspetiva dos freires, esta manipulação régia poderia não constituir uma limitação e ser até conveniente, já que se viviam tempos em que a proximidade à Coroa viabilizaria o modo de vida destes homens, nomeadamente, os seus compromissos sociopolíticos. Por sua vez, na perspetiva de D. Dinis, não se sabe se prevaleceria um sentimento de satisfação e de segurança, por ter conseguido intervir de forma direta no universo institucional das Ordens Militares, exercendo apertado controlo sobre as mesmas, ou, um sentimento de frustração, por ter tido a pretensão de dar um outro destino a esses bens, mas de impossível resolução no quadro do Papado que dirigiu o processo.
1. Francesco Gabrieli: Arab Historians of the Crusades, 2.ª ed., London, Routledge & Kegan Paul, 1969, pp. 349-350.
2. Riley-Smith definiu cruzada como uma peregrinação armada proclamada pelos papas, destinada a recuperar ou a defender territórios e pessoas cristãos. Cada cruzado (ou, pelo menos, alguns deles) fazia um voto, colocava uma cruz nas suas vestes, recebia a garantia de privilégios espirituais, como a indulgência, e temporais. A cruz era associada a uma ideia de penitência e auto-santificação. Jonathan Riley-Smith: «Rethinking the Crusades», First Things, 101, março 2000, pp. 20-23. Disponível em: <http://www.firstthings.com/ftissues/ft0003/opinion/riley-smith.html>.
3. Franco Cardini: «Il ruolo degli ordini militari nel progetto di ‘recuperatio’ della Terrasanta secondo la trattatistica dalla fine del XIII al XIV secolo», em Francesco Tommasi (ed.): Acri 1291. La fine della presenza degli ordini militari in Terra Santa e i nuovi orientamenti nel XIV secolo, Perugia, Quattroemme, 1996, p. 137.
4. Judith Bronstein: The Hospitallers and the Holy Land. Financing the Latin East: 1187-1274, 1.ª ed., Woodbridge, The Boydell Press, 2005, pp. 103-132.
5. Antony Leopold: How to Recover the Holy Land. The Crusade Proposals of the Late Thirteenth and Early Fourteenth Centuries, Ashgate, 2000.
6. F. Cardini: Il ruolo degli ordini militari..., p. 137. Jonathan Riley-Smith: The Crusades. A History, 2.ª ed., Londres, Continuum, 2005, pp. 246-247.
7. F. Cardini: Il ruolo degli ordini militari..., p. 140. Alan Forey: «The Military Orders in the crusading proposals of the late-thirteenth and early-fourteenth centuries», em Military Orders and the Crusades, Variorum Reprints, 1994, p. 320, 334 y 337, n. 104.
8. A. Forey: «The Military Orders in the crusading proposals…», p. 321.
9. Norman Housley: «The Crusading Movement: 1274-1700», em J. Riley-Smith (ed.): The Oxford History of the Crusades, Oxford, Oxford University Press, 1999, pp. 258-290.
10. A. Leopold: How to Recover the Holy Land..., pp. 1-51. Os