Outra consequência produzida pela bula «Vox in excelso» fez-se sentir na criação de um repositório documental de valor jurídico-probatório relacionado com a Ordem do Templo, com a finalidade de atestar uma parte do seu espólio patrimonial em Portugal. Desta altura conhecem-se tanto inquirições régias ao património dos Templários, como a cópia de documentos pertencentes aos freires e relacionados com os seus bens imóveis. Deste período, conservam-se nos arquivos portugueses, pelo menos, três inquirições de grande dimensão sobre os bens da Ordem do Templo, datadas de 1312,21 131422 e 1317,23 a que se podem acrescentar outras com objetivos mais específicos. A título de exemplo, sublinhe-se que o referido inquérito de 1314 se destinava a coligir informações organizadas em torno de 25 artigos sobre as jurisdições exercidas pelos Templários.24 As respostas obtidas são muito elucidativas dos objetivos que a coroa tinha definido em relação a esta instituição. As testemunhas mais contundentes afirmam que tudo pertencia e dependia do rei, desde os rendimentos auferidos pelo Templo à tutela das questões judiciais e militares, passando pela intervenção régia na organização interna da instituição, através da escolha dos freires e dos mestres e do controlo das reuniões capitulares.
Na sequência dos dados apurados, no ano de 1318, em Portugal, assistiu-se a grande atividade relacionada com a supressão da Ordem do Templo. Depois de no mês de agosto terem sido nomeados os procuradores de D. Dinis à Santa Sé,25 em 30 de setembro desse mesmo ano, em dois documentos distintos,26 foi copiada diversa documentação com efeitos probatórios sobre a Ordem do Templo.
Os procuradores enviados por D. Dinis à Santa Sé são João Lourenço de Monsaraz e Pedro Peres com a missão de negociarem junto da cúria romana o destino dos bens da Ordem do Templo em Portugal. Estes homens são, nem mais nem menos, um cavaleiro e um clérigo, respetivamente, representando a dupla condição dos freires. A procuração que receberam, datada de 14 de agosto de 1318, refere-os como «o nobre baron Joham Lourenço cavaleyro e o sagez baron Pero Peres, coonigo de Coymbra».27 A partir da citação, sublinhe-se a consciência da necessária capacidade de argumentação, já que da sagacidade com que os embaixadores expusessem os argumentos dependeria o sucesso da missão. Pela leitura da bula de fundação da Ordem de Cristo, percebe-se que a retórica se desenvolvia em torno da utilidade da nova instituição no contexto do poder régio e do impacto da condição fronteiriça da instalação dos freires no domínio da expansão da fé e da captação de proveitos materiais.
Perante tudo isto, a Ordem de Cristo foi oficialmente criada em 14 de março de 1319, pela bula «Ad ea ex quibus» outorgada pelo Papa João XXII.28 No dia seguinte, pela bula «Desiderantes ab intimis», D. Gil Martins foi nomeado Mestre da recém-criada Ordem.29 Estas bulas foram outorgadas em Avinhão, o que significa que o mensageiro que as trouxe até Portugal teria pela frente quase um mês de viagem.30
O Mestre escolhido – D. Gil Martins – tinha, até então, desempenhado funções similares na Ordem de Avis, precisamente a Ordem que viria a dar o nome à 2.ª dinastia portuguesa pelo facto de João, filho do rei D. Pedro I, que havia desempenhado o ofício de Mestre, ter sido convertido em Rei de Portugal em 1385. Falamos de D. João, Mestre de Avis, elevado ao trono com o nome de D. João I de Portugal. Segundo a bula fundacional, D. Gil Martins «gardara sempre lealdade ao dicto rrey», o que revela a necessidade de garantir, desde logo, a total cumplicidade com a coroa.31 No entanto, e com independência de quem é este homem, importa salientar que a sua escolha implica também a escolha da Ordem de Calatrava, com sede no reino vizinho e à qual estava ligado.
Para além dos argumentos régios já enunciados, houve outros fatores que reforçaram a justificação da criação da Ordem de Cristo, como a própria evolução económica e social do Ocidente medieval. Ao evidenciar-se a acumulação de problemas graves no contexto do sistema senhorial, fomentou-se a procura de novos espaços de afirmação, cada vez mais de perfil marítimo, revalorizando-se o potencial do Mediterrâneo para a história de Portugal.32 A este nível, tanto a já citada bula de criação da Ordem de Cristo como a de nomeação do seu primeiro Mestre expressam a intencionalidade de prossecução da cruzada em territórios situados para além da fronteira territorial.
A compreensão da criação da Ordem de Cristo implica o reconhecimento de duas outras questões capitais. Primeiro, não se pode reduzir à sua bula fundacional, pois a Ordem resulta de um processo que começa em 1307 e se prolonga até 1326. Segundo, não constitui uma ação isolada, sendo conhecidas manifestações da política régia de reforço da autoridade monárquica e de ambição de controlo de todas as outras Ordens Militares instaladas em Portugal.
Quanto à primeira questão, e do ponto de vista documental, há um conjunto de textos que fazem parte deste longo processo. A partir de 1307 foram produzidos documentos relacionados com a transição da base territorial do Templo para a administração régia, bens estes que só mais tarde seriam transferidos para a Ordem de Cristo.
A definição das áreas geográficas de influência da nova Ordem de Cristo constitui uma questão de resolução gradual. Castro Marim, assumida com toda a projeção na bula fundacional e integrada no bispado de Silves, foi escolhida para fixar a sede conventual. Era um lugar simbólico pela sua dimensão de fronteira, associada à cruzada. De acordo com a bula era «castelo muy forte a que a desposiçam do logar da seer defeso, que he na fronteyra dos dictos enmiigos e parte con eles, podiasse fazer nova cavalaria de lidadores de Jhesu Christo».33 Curiosamente, a sede dos Templários tinha funcionado bem mais a norte, em Tomar. Na mencionada bula de 14 de março de 1319 estabelecia-se a impossibilidade de revogação da doação régia da vila algarvia de Castro Marim, a par dos domínios situados em Castelo Branco, Longroiva, Tomar e Almourol, os quais tinham constituído o núcleo principal dos territórios Templários (à exceção de Castro Marim); a referência aos restantes bens imóveis era discretamente incluída numa expressão muito vaga, o que espelha o grande desconhecimento sobre a totalidade desse património. De acordo com as palavras do rei, D. Gil Martins «non sabe tambem hu esses beens son».34