— Não é bonito rir-se muito, andar aí como uma sirigaita, mas também assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.
Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas logo lhe tornava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava em cair naquela doentia lassidão que lhe era própria.
Veio muita gente. Além das moças e as respeitáveis mães, acudiram ao convite do general, o Contra-Almirante Caldas, o doutor Florêncio, engenheiro das águas, o Major honorário Inocêncio Bustamante, o Senhor Bastos, guarda-livros, ainda parente de Dona Maricota, e outras pessoas importantes. Ricardo não fora convidado porque o general temia a opinião pública sobre a presença dele em festa séria; Quaresma o fora, mas não viera; e Cavalcânti jantara com os futuros sogros,
Às seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismênia, cumprimentando-a, não sem um pouco de inveja no olhar.
Irene, uma alourada e alta, aconselhava:
— Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque.
Tratava-se do enxoval. Todas elas, embora solteiras, davam conselhos, sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e as que podiam ser dispensadas. Estavam ao par.
A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos:
— Eu, ontem, vi na Rua da Constituição um dormitório de casal, muito bonito, você por que não vai ver, Ismênia? Parece barato.
A Ismênia era a menos entusiasmada, quase não respondia às perguntas; e, se as respondia, era por monossílabos. Houve um momento em que sorriu quase com alegria e abandono. Estefânia, a doutora, normalista, que tinha nos dedos um anel, com tantas pedras que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos ouvidos da noiva e fez uma confidência. Quando deixou de segredar-lhe, assim como se quisesse confirmar o dito, dilatou muito os seus olhos maliciosos e quentes, e disse alto:
— Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...
Ela aludia à resposta que, à sua confidência, Ismênia tinha dado com parcimônia: qual o quê?
Todas elas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma parte dos velhos rodeavam Cavalcânti, muito solene, dentro de um grande fraque preto.
— Então, doutor, acabou, hein? dizia este a jeito de um cumprimento.
— É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os embargos - fui de um heroísmo!...
— Conhece o Chavantes? perguntava um outro.
— Conheço. Um crônico, um pândego...
— Foi seu colega?
— Foi, isto é, ele é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo ano.
Cavalcânti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro.
— É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no "deve" e "haver". Hoje, torço a orelha e não sai sangue.
— Atualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente Cavalcânti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala numa Academia Livre de Odontologia! É o cúmulo! Um curso difícil e caro, que exige cadávares, aparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal...
— Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns, Digo-lhe o que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!
— Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcânti.
— Em engenharia. Está no Maranhão, na estrada de Caxias.
— Boa carreira.
Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural.
Para aquela gente toda, Cavalcânti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; e não juntavam à imagem que tinham dele atualmente, as coisas que porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era outra diferente da deles e fora ungido de não sei que coisa vagamente fora da natureza terrestre, quase divina.
Para o lado de Cavalcânti, que se achava na sala de visitas, vieram os menos importantes. O general ficara na sala de jantar, fumando, cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com ele o Contra-Almirante Caldas, o Major Inocêncio, o doutor Florêncio e o Capitão de Bombeiros Sigismundo.
Inocêncio aproveitou a ocasião para fazer uma consulta a Caldas sobre assunto de legislação militar. O contra-almirante era interessantíssimo, Na Marinha, por pouco que não fazia pendant com Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não era dele. Logo que se viu primeiro-tenente, Caldas foi aos poucos se metendo consigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem empenhos e sem amigos nos altos lugares, se esqueciam dele e não lhe davam comissões de embarque. É curiosa essa coisa das administrações militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos,
Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado "Lima Barros". Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha, teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio. Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o tal "Lima Barros" fizesse parte da esquadrilha do alto Uruguai. Consultou o comandante.
— Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia imediatamente para a flotilha do Rio Grande.
Ei-lo a fazer malas para o alto Uruguai, onde chegou enfim, depois de uma penosa e fatigante viagem. Mas aí também não estava o tal "Lima Barros". Onde estaria então? Quis telegrafar para o Rio de Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais que não andava em cheiro de santidade. Esteve assim um mês em Itaqui, hesitante, sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia khe veio a idéia de que o navio bem poderia estar no Amazonas. Embarcou na intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a praxe, apresentou-se às altas autoridades da Marinha. Foi preso e submetido a conselho.
O "Lima Barros" tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai.
Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus generais. Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais. Deixaram-no "encostado", como se diz na gíria militar, e ele levou quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a promoções de oficiais. Comprava repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação da sua reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam meses o infinito rosário de repartiçôes e eram sempre indeferidos, sobre consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar. Ultimamente constituíra advogado junto à justiça federal e lá andava ele de cartório em cartório, acotovelando-se com meirinhos, escrivães, juízes e advogados - esse poviléu rebarbativo do foro que parece ter contraído todas as misérias que lhe passam pelas mãos e pelos olhos.
Inocêncio Bustamante também tinha a mesma mania demandista. Era renitente, teimoso mas servil e humilde. Antigo voluntário da pátria, possuindo honras de major, não havia dia em que não fosse ao quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros.
Não