— Continue na tentativa, Senhor Ricardo, que é digno de louvor.
— Obrigado. Fique certa, minha senhora, que o violão é um belo instrumento e tem grandes dificuldades. Por exemplo...
— Qual! Interroumpeu Quaresma abruptamente. Há outros mais difíceis.
— O piano? perguntou Ricardo.
— Que piano! O maracá, a inúbia.
— Não conheço.
— Não conheces? É boa! Os instrumentos mais nacionais possíveis, os únicos que o são verdadeiramente; instrumentos dos nossos antepassados, daquela gente valente que se bateu e ainda se bate pela posse desta linda terra. Os caboclos!
— Instrumento de caboclo, ora! disse Ricardo.
— De caboclo! Que é que tem? O Léry diz que são muito sonoros e agradáveis de ouvir... Se é por ser de caboclo, o violão também não vale nada. - é um instrumento de capadócio.
— De capadócio, major! Não diga isso...
E os dois ainda discutiram acaloradamente diante da moça, surpresa, espantada, sem atinar, sem explicação para aquela inopinada transformação de gênio do seu padrinho, até ali tão sossegado e tão calmo.
Capítulo III: A notícia do Genelício
Então quando se casa, Dona Ismênia?
— Em março. Cavalcânti já está formado e...
Afinal a filha do general pôde responder com segurança à pergunta que se lhe vinha fazendo há quase cinco anos. O noivo finalmente encontrara o fim do curso de dentista e marcara o casamento para dai a três meses. A alegria foi grande na família; e, como em tal caso, uma alegria não podia passar sem um baile, uma festa foi anunciada para o sábado que se seguia ao pedido da pragmática.
As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais contentes que a irmã nubente. Parecia que ela lhes ia deixar o caminho desembaraçado, e fora a irmã quem até ali tinha impedido que se casassem.
Noiva havia quase cinco anos, Ismênia já se sentia meio casada. Esse sentimento junto à sua natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era negócio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos; era uma idéia, uma pura idéia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da idéia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: "Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar"... ou senão: "Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar..."
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele - "porque, quando você se casar..." - e a menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa coisa: casar.
De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. "Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se, não fez grande negócio, pois parece que o noivo não é lá grande coisa"; ou então: "A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!..."
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe representou coisa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, "tia", parecia-lhe um crime, uma vergonha.
De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer coisa profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou para um grande afeto, na sua inteligência a idéia de "casar-se" incrustou-se teimosamente como uma obsessão.
Ela não era feia; amorenada, com os seus traços acanhados, o narizinho mal feito, mas galante, não muito baixa nem muito magra e a sua aparência de bondade passiva, de indolência de corpo, de idéia e de sentidos - era até um bom tipo das meninas a que os namorados chamam - "bonitinhas". O seu traço de beleza dominante, porém, eram seus cabelos: uns bastos cabelos castanhos, com tons de ouro, sedosos até ao olhar.
Aos dezenove anos arranjou namoro com o Cavalcânti, e à fraqueza de sua vontade e ao temor de não encontrar marido não foi estranha a facilidade com que o futuro dentista a conquistou.
O pai fez má cara. Ele andava sempre ao par dos namoros da filhas: "Diga-me sempre, Maricota - dizia ele - quem são. Olho vivo!... É melhor prevenir que curar... Pode ser um valdevinos e..." Sabendo que o pretendente à Ismênia era um dentista, não gostou muito. Que é um dentista? perguntava ele de si para si. Um cidadão semiformado, uma espécie de barbeiro. Preferia um oficial, tinha montepio e meio soldo; mas a mulher convenceu-o de que os dentistas ganham muito, e ele acedeu.
Começou então Cavalcânti a freqüentar a casa na qualidade de noivo "paisano", isto é, que não pediu, não é ainda "oficial".
No fim do primeiro ano, tendo notícia das dificuldades com que o futuro genro lutava para acabar os estudos, o general foi generosamente em seu socorro. Pagou-lhe taxas de matrículas, livros e outras coisas. Não era raro que após uma longa conversa com a filha, Dona Maricota viesse ao marido e dissesse: "Chico, arranja-me vinte mil-réis que o Cavalcânti precisa comprar uma Anatomia".
O general era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretensão marcial, não havia no seu caráter a mínima falha. Demais, aquela necessidade de casar as filhas ainda o faziam melhor quando se tratava dos interesses delas.
Ele ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para evitar despesas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo dia; e assim o namoro foi correndo até ali.
Enfim - dizia Albernaz à mulher, na noite do pedido, quando já recolhidos - a coisa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona Maricota, vamos descontar esta letra.
A satisfação resignada do general era porém, falsa; ao contrário: ele estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro momento azado, lá dizia ele:
— É um inferno, esta vida! Imagina tu, Castro, que ainda por cima tenho que casar uma filha!
Ao que Castro interrogava:
— Qual delas?
— A Ismênia, a segunda, respondia Albernaz e logo acrescentava: tu é que és feliz: só tiveste filhos.
— Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malícia, aprendi a receita. Por que não fizeste o mesmo?
Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazéns, às lojas de louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa, porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundância e riqueza que traduzisse o seu grande contentamento,
Na manhã do dia da festa comemorativa do pedido, Dona Maricota amanheceu cantando. Era raro que o fizesse: mas nos dias de grande alegria, ela cantarolava uma velha ária, uma coisa do seu tempo de moça e as filhas que sentiam nisto sinal certo de alegria corriam a ela, pedindo-lhe isto ou aquilo.
Muito ativa, muito diligente, não havia dona-de-casa mais econômica, mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço das criadas. Logo que despertou, pôs tudo em atividade, as criadas e as filhas. Vivi e Quinota foram para os doces; Lalá e Zizi auxiliaram as raparigas na arrumação das salas e dos quartos, enquanto ela e Ismênia iam arrumar a mesa, dispô-la com muito gosto e esplendor. O móvel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas do dia. A alegria de Dona Maricota era grande; ela não compreendia que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio e desonroso para a família. A sua satisfação não vinha do simples fato de ter descontado uma letra, como ele dizia. Vinha mais profundamente dos seus sentimentos maternos e de família.
Ela arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indiferente,