Com mais ou menos espírito, os comentários não cessavam e a ausência de relações de Quaresma no meio de que saíam, fazia com que fossem de uma constância pouco habitual. Levaram duas semanas com o nome do subsecretário.
Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade muito viva e capaz de sofrer profundamente com a menor coisa. Nunca sofrera críticas, nunca se atirou à publicidade, vivia imerso no seu sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora deles, ele não conhecia ninguém e, com as pessoas com quem falava, trocava pequenas banalidades, ditos de todo dia, coisas com que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver.
Nem mesmo a afilhada o tirava dessa reserva, embora a estimasse mais que a todos.
Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de estranho a tudo, às competições, às ambições, pois nada dessas coisas que fazem os ódios e as lutas tinha entrado no seu temperamento.
Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d'alma que vão habitar esses homens de uma ideia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas.
É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.
A continuidade das troças feitas nos jornais, a maneira com que o olhavam na rua, exasperavam-no e mais forte se enraizava nele a sua ideia. À medida que engulia uma troça, uma pilhéria, vinha-lhe meditar sobre a sua lembrança, pesar-lhe todos os aspectos, examiná-la, detidamente, compará-la a coisas semelhantes, recordar os autores e autoridades e, à proporção que fazia isso, a sua própria convicção mostrava a inanidade da crítica, a ligeireza da pilhéria e a ideia o tomava, o avassalava, o absorvia cada vez mais.
Se os jornais tinham recebido o requerimento com facécias de fundo inofensivo e sem ódio, a repartição ficou furiosa. Nos meios burocráticos, uma superioridade que nasce fora deles, que é feita e organizada com outros materiais que não os ofícios, a sabença de textos de regulamentos e a boa caligrafia, é recebida com a hostilidade de uma pequena inveja.
É como se se visse no portador da superioridade um traidor à mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não há só uma questão de promoção, de interesse pecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos, vendo aquele colega, aquele galé como eles, sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, às olhadelas superiores dos ministros, com mais títulos à consideração, com algum direito a infringir as regras e os preceitos.
Olha-se para ele com o ódio dissimulado com que o assassino plebeu olha para o assassino marquês que matou a mulher e o amante. Ambos são assassinos, mas, mesmo na prisão, ainda o nobre e o burguês trazem o ar do seu mundo, um resto da sua delicadeza e uma inadaptação que ferem o seu humilde colega de desgraça.
Assim, quando surge numa secretaria alguém cujo nome não lembra sempre o título de sua nomeação, aparecem as pequeninas perfídias, as maledicências ditas ao ouvido, as indiretas, todo o arsenal do ciúme invejoso de uma mulher que se convenceu de que a vizinha se veste melhor do que ela.
Amam-se ou antes suportam-se melhor aqueles que se fazem célebres nas informações, na redação, na assiduidade ao trabalho, mesmo os doutores, os bacharéis, do que os que têm nomeada e fama. Em geral, a incompreensão da obra ou do mérito do colega e total e nenhum deles se pode capacitar que aquele tipo, aquele amanuense, como eles, faça qualquer coisa que interesse os estranhos e dê que falar a uma cidade inteira,
A brusca popularidade de Quaresma, o seu sucesso e nomeada efêmera irritaram os seus colegas e superiores. Já se viu! dizia o secretário. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma coisa! Pretensioso! O diretor, ao passar pela secretaria, olhava-o de soslaio e sentia que o regulamento não cogitasse do caso para lhe infligir uma censura. O colega arquivista era o menos terrível, mas chamou-o logo de doido.
O major sentia bem aquele ambiente falso, aquelas alusões e isso mais aumentava o seu desespero e a teimosia na sua idéia. Não compreendia que o seu requerimento suscitasse tantas tempestades, essa má vontade geral; era uma coisa inocente, uma lembrança patriótica que merecia e devia ter o assentimento de todo mundo; e meditava, voltava a idéia, e a examinava com mais atenção.
A extensa publicidade, que o fato tomou, atingiu o palacete de Real Grandeza, onde morava o seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das empreitadas de construções de prédios, viúvo, o antigo quitandeiro retirarase dos negócios e vivia sossegado na ampla casa que ele mesmo edificara e tinha todos os remates arquitetônicos do seu gosto predileto: compoteiras na cimalha, um imenso monograma sobre a porta da entrada, dois cães de louça, nos pilares do portão da entrada e outros detalhes equivalentes.
A casa ficava ao centro do terreno, elevava-se sobre um porão alto, tinha um razoável jardim na frente, que avançava pelos lados, pontilhado de bolas multicores; varanda, um viveiro, onde pelo calor os pássaros morriam tristemente. Era uma instalação burguesa, no gosto nacional, vistosa, cara, pouco de acordo com o clima e sem conforto.
No interior o capricho dominava, tudo obedecendo a uma fantasia barroca, a um ecletismo desesperador. Os móveis se amontoavam, os tapetes, as sanefas, os bibelots e a fantasia da filha, irregular e indisciplinada, ainda trazia mais desordem àquela coleção de coisas caras.
Viúvo, havia já alguns anos, era uma velha cunhada quem dirigia a casa e a filha, quem o encaminhava nas distrações e nas festas. Coleoni aceitava de bom coração esta doce tirania. Queria casar a filha, bem e ao gosto dela; não punha, portanto, nenhum obstáculo ao programa de Olga.
Em começo, pensou em dá-la a seu ajudante ou contramestre, uma espécie de arquiteto que não desenhava, mas projetava casas e grandes edifícios. Primeiro sondou a filha. Não encontrou resistência, mas não encontrou também assentimento. Convenceu-se de que aquela vaporosidade da menina, aquele seu ar distante de heroína, a sua inteligência, o seu fantástico, não se dariam bem com as rudezas e a simplicidade campônias de seu auxiliar.
Ela quer um doutor - pensava ele - que arranje! Com certeza, não terá ceitil, mas eu tenho e as coisas se acomodam.
Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias dúzias de contos de réis.
Havia momentos que se aborrecia um tanto com os propósitos da menina. Gostando de dormir cedo, tinha que perder noites e noites no Lírico, nos bailes; amando estar sentado em chinelas a fumar cachimbo, era obrigado a andar horas e horas pelas ruas, saltitando de casa em casa de modas, atrás da filha, para no fim do dia ter comprado meio metro de fita, uns grampos e um frasco de perfume.
Era engraçado vê-lo nas lojas de fazendas cheio de complacência de pai que quer enobrecer o filho, a dar opinião sobre o tecido, achar este mais bonito, comparar um com outro, com uma falta de sentimento daquelas coisas que se adivinhava até no pegá-las. Mas ele ia, demorava-se e esforçava-se por entrar no segredo, no mistério, cheio de tenacidade e candura perfeitamente