Tiniam na rua as campainhas das vacas, trens bufavam rodando pesadamente; às vezes um silvo varava o silêncio. Havia sol. A luz dourada entrava pelas brechas das persianas brilhando no verniz dos móveis e, muito longe, soavam sinos, cometas vibravam.
Ia para a janela, mas recuou pensando nos vizinhos, receoso de alguma pergunta e estava parado, enrolando um cigarro, quando bateram à porta: era o lixeiro. Abriu; o homem passou às pressas, meio curvado, murmurando "Bom dia" e foi-se pelo corredor, com o balde à cabeça. Ele deixou-se estar, indo e vindo na sala estreita, até que o lixeiro tornou, sempre apressado, e saiu. Pareceu-lhe tê-lo visto sorrir, um sorriso irônico de quem se regozija com o sofrimento alheio. Teria ele sabido? Encostou-se à rótula olhando pelas rexas - o homem, trepado a uma das rodas da carroça, despejou o balde e dobrou a tampa que bateu com estrépito, saltou à calçada, deu volta, a correr, e, tomando as rédeas, incitou o animal que arrancou.
Na rua havia ainda grandes poças d'água, posto que os paralelepípedos, já enxutos, aparecessem muito brancos, lavados. O céu, limpidamente azul, resplandecia com um brilho de seda; subiam tufos de fumo das locomotivas, grossos, em rolos muito brancos, aos jatos, como flocos que se iam esgarçando, diluindo-se no ar.
Irresoluto, tão alquebrado d'alma como de corpo, com o desânimo, que é a fadiga moral, onde parava deixava-se ficar inerte, d'olhos imóveis, abandonado. Idéias contrárias debatiam-se-lhe no espírito, sentimentos diversos disputavam: ora o ódio irritava-lhe os nervos, ora a piedade umedecia-lhe os olhos.
Cabisbaixo, lentamente, com as mãos para as costas, seguiu pelo corredor e, na sala de jantar, levantando a cabeça, viu, com surpresa, a mãe parada à ponta do quarto de Violante, a chorar em silêncio, como se já não tivesse gemidos. Não lhe deu palavra; deixou-se cair em uma cadeira e ficou-se a olhar, absorto. Felícia trouxe-lhe o café e ele, distraído, pôs-se a mexê-lo vagarosamente.
Ouvindo bater à porta voltou-se ligeiro e disse à negra: que fosse ver, devia ser o caixeiro. Que lhe falasse lá mesmo, não queria ninguém em casa. A negra seguiu pelo corredor enrolando a trunfa em volta da carapinha grisalha e dura. Dona Júlia, sentando-se, disse, com uma doce expressão de ternura:
— Ela não levou as jóias, Paulo,- foi só com os brincos e com o anel que usava sempre.
— Como não levou?!
— Não, estão aqui; - e mostrou uma caixa verde, que fora de sabonetes, explicando:
— Estavam no guarda-vestidos. Nem as jóias, nem a roupa: está tudo aí. - Paulo conservou-se calado, d'olhos baixos, raspando o soalho com os pés. - Vais à polícia outra vez, não?
— Para quê?
A velha encarou-o boquiaberta.
— Como? Pois não vais?
— Eu, não. Que vou lá fazer? Para o homem dizer-me de novo: Que vai ver? Eu não.
— Mas, meu filho, se a polícia não fizer alguma coisa, quem poderá fazer? Queres que tua irmã fique para aí, atirada no mundo, sem uma pessoa que tome as dores por ela? Se não queres ir eu vou e tenho certeza de que hei de conseguir alguma coisa.
Felícia tornou à sala com os jornais que recebera do entregador. Paulo, em dois goles, sorveu o café morno e, cruzando as pemas, tomou as folhas que a negra deixara sobre a mesa. Lançou os olhos, com ânsia, à primeira página, percorrendo todas as colunas, à procura da notícia da fuga de Violante. Bem podia algum repórter ter aparecido na polícia depois da sua saída levando a informação escandalosa. Tranqüilizou-se, porém, lembrando-se da hora adiantada em que se dera o crime - já todos os jornais deviam estar prontos e nem tão importante era o caso para que o plantonista se arriscasse, por ele, a perder o correio.
Mais calmo, acendendo o cigarro, pôs-se a ler o Equador, achando aqui, ali, notícias que revisara: um desastre no mar, uma tentativa de suicídio e o conto de Aurélio Mendes, ao alto da primeira página, enchendo densamente as duas primeiras colunas.
Com o jornal diante dos olhos pensava nos companheiros. Que diriam eles quando a notícia, saindo da composição, lhes chegasse às mãos? O Brites conhecia Violante, e o Bruno, que a vira, uma vez, na redação, numa terça-feira gorda, ficara impressionado pelos seus olhos "que ardiam" - Que diriam eles quando lessem a prova infame? E, como se já sentisse a vergonha que lhe estava reservada, passou a mão pela fronte, depois, atirando um murro à mesa, ergueu-se: "Não! Não volto!" exclamou respondendo a um pensamento. Dona Júlia levantou os olhos marejados encarando-o em silêncio. "Não volto!" repetiu debruçando-se à janela que abria sobre o quintalejo. Lá estavam os caixotes com violetas e malvas, à sombra do muro. Eram os canteiros de Violante.
Ao fundo, num cercado de ripas, as galinhas cacarejavam assanhadas, com fome. Um gato caminhava lentamente pelo muro, ao sol e, entre as folhas miúdas duma esponjeira, uma camaxirra chilreava trêfega, na alegria da luz, entre o brilho das gotas da chuva, engastadas nas folhas.
Paulo, com o rosto nas mãos, os cotovelos no beiral da janela, elevou o olhar pensativo. De vez em vez sacudia a cabeça com um sorriso magoado. Amofinava-o aquela idéia dum possível comentário dos companheiros na sala da revisão, perto dele: o Bruno, sensual, a invejar o homem que arrebatara Violante; o Amaro, com quem tivera uma rusga, a rejubilar vingativo; o Malheiros a rir, com a sua eterna ironia, e os compositores, até o Lúcio, retranca, toda aquela gente a espetá-lo com olhares perversos ou curiosos. Talvez mesmo algum, mais ousado, lhe pedisse pormenores oferecendo-se para ajudá-lo na pesquisa ou com um empenho para o chefe, não porque o quisesse auxiliar, em desinteressada camaradagem, mas para entranhar-se no escândalo, conhecer as minúcias, todos os pequeninos incidentes. "Não! Não volto!" E encolheu os ombros.
Não eram somente os revisores do Equador, toda aquela multidão promíscua do jornal que lhe aparecia, inclemente, a rir, num surdo remoque: eram os estudantes, seus colegas da Escola, troçando o caso em volta do tabuleiro da Sabina, nos anfiteatros, nos corredores, até diante das mesas de dissecção.
Nas ruas também, quando passasse, haviam de mostrá-lo: "É aquele!" E ririam, com escárnio, da sua desonra; talvez o responsabilizassem por ela. Fariam dele um carrasco e da irmã uma vítima - que fugira para evitar tormentos, que se libertara do verdugo, preferindo as misérias do meretrício à vida humilhada e torturada. E ele, inocente, seguia, vexado, sob a dureza daqueles olhares que lhe infligiam um injusto castigo. Teve um novo movimento de cólera e Dona Júlia, que o olhava, perguntou:
— Que é?
Encolheu os ombros, deixando a janela e, molemente, abandonadamente, encostou-se à mesa brincando com a colher que ficara na salva de metal. De repente, numa inspiração, exclamou:
— Vou procurar o Mamede.
— Mamede?! Para quê? perguntou a mãe.
— Para descobrir Violante.
— E Mamede sabe, meu filho!?
— Mamede? Mamede conhece toda a cidade, é íntimo dessa gente da polícia. Se com ele eu não descobrir Violante, então... - esticou o beiço, desanimado. - A senhora bem sabe que ele foi agente de polícia, era um dos melhores; saiu por causa do gênio.
— E sabes onde ele mora?
— Mora em uma estalagem, na Rua do Riachuelo. Vou já. Hoje é domingo; ele deve estar em casa.
— Então, vai. E a polícia?
— Qual polícia! Penso lá em polícia!? Descanse. - Deu alguns passos e voltou-se: Olhe, se eu tivesse dinheiro ainda bem, mas assim...
E caminhou para a cozinha. Felícia talhava a carne sobre a mesa encardida e acumulada; o gato miava, fazendo voltas, com a cauda hirta e, numa gaiola, o gaturamo gorjeava, pulando, todo arrufado e úmido