— Ah! meu filho... E se for um ricaço? O dinheiro vence tudo. Os ricos governam e a minha pobre filha é que fica para aí, perdida. Tu conheces tanta gente, Paulo... Tem pena de mim. Tem pena de tua irmã.
E a pobre velha, de mãos postas, soluçando, deixou-se cair de joelhos, a implorar.
— Tem, Paulo, tem pena de mim. Que vergonha, meu filho! - e inclinou-se, com o rosto nas mãos, os cotovelos fincados na cadeira. Paulo levantou-a:
— Eu farei tudo. mamãe; descanse. Nem conto com a polícia. Eu mesmo vou procurar Violante.
— Sim, meu filho; ela é tua irmã! Nem sabe o passo que deu. - Nervosa, trêmula, arrastando-se para o quarto, pôs-se a dizer: Nem eu sei com que cara hei de aparecer amanhã a essa gente da vizinhança.
Paulo já havia entrado no quarto quando ouviu o baque de um corpo. Precipitou-se, sobressaltado, e foi achar a mãe de joelhos, com a cabeça derreada, de mãos postas, exorando as imagens. Retrocedeu em pontas de pés, com um respeito sagrado e tornou ao seu quarto, na sala de visitas. Felícia, sentada no tapete, as pernas esticadas, os pés hirtos, ressonava. A porta estava entreaberta. Entrou, deu luz ao gás e, diante da estante atochada de livros, desabafou, colérico:
— Cínica! E tudo por vaidade. É a mania do luxo. Uma moça pobre, que não pensava em outra coisa senão em vestir-se... E eu que morresse! E a pobre velha que se estafasse! Ah! coisa nojenta!
Encontrou-se à mesa, onde tinha o retrato da família, num quadro: o pai, a mãe, ele, ela: pequenina, de vestido curto, com uma boneca nos braços, recaída sobre o colo de Dona Júlia, ainda moça e forte. Tomou o quadro e pôs-se a contemplá-lo e, de novo, os olhos se lhe encheram d'água.
O pai, muito severo, de pé, apoiado à espada, fitava-o duramente, como se o responsabilizasse por aquele fato que deslustrava o nome que ele havia, com tanto brio, honrado na guerra e na paz, legando-o puro aos filhos.
E Paulo, com um tremor nervoso, como se efetivamente aquela figura, animada por milagre, lhe falasse, pôs-se a dizer baixinho, em sussurro: "Meu pobre pai! Meu pobre pai!" Mas os seus olhos, empanados pelo pranto, buscavam a criança inocente que ali estava, linda e pura, com os cachos dos cabelos muito negros, confundidos com os bucres louros da boneca.
Depois o quadro e, acendendo um cigarro, sentou-se na cama e ia tirar as botinas que, com a umidade, se lhe haviam colado aos pés, quando ouviu os passos arrastados de Dona Júlia. A velha empurrou a porta e entrou, d'olhos muito abertos, a arquejar, e foi logo perguntando:
— Tu falaste no soldado? Quem sabe se não foi ele? - Paulo encolheu os ombros e a velha, sentando-se, continuou: Eu não atino com outra pessoa. Se não foi o soldado, foi alguém da Estrada de Ferro.
— Qual da Estrada de Ferro!
Depois de uma pausa, ela insistiu:
— Para mim, foi o soldado. Eu, se fosse você, ia de manhã ao quartel.
Paulo explodiu:
— Pois mamãe acha lá possível que Violante, vaidosa como é, saísse de casa com um soldado?!
— Quem sabe, meu filho!
— Ora!... Ela não deu esse passo por amor. Violante não quer bem a ninguém, nem à senhora, acredite. Se ela lhe tivesse um pouco de amizade, não saía de casa, como saiu, deixando-a de cama. Aquilo é a criatura mais indiferente que eu conheço. Se mamãe tivesse ouvido os meus conselhos, não estava agora aí chorando.
— Ora, Paulo... tinha de acontecer.
— Ah! Tinha de acontecer?... Não, não aconteceria se a senhora não lhe passasse tanto a mão pela cabeça. Que fazia Violante aqui em casa? Era uma princesa: Dormia até as tantas e passava os dias polindo as unhas ou colecionando folhetins dos jornais. Se a senhora a obrigasse a coser e a arrumar a casa não aconteceria o que aconteceu. Mas ninguém tocasse em dona Violante!
— Está bom, não queiras agora culpar-me. Eu fazia tudo isso porque sou mãe.
— Porque é mãe... Pois sim. E eu agora que deixe os meus afazeres e que ande por aí, envergonhado, à procura da senhora minha irmã. - Levantou-se indignado: Eu não ponho mais os pés na Escola! Essas coisas sabem-se logo e eu não tenho cara para aparecer aos colegas. "É irmão de fulana, que fugiu." Eu não! - Voltou-se repentinamente para a velha, carrancudo: Olhe, nós estamos aqui aflitos. E ela?...
— Sabe Deus se já não está arrependida! - suspirou a velha.
— Arrependida! Ela fez tudo com calma, levou todas as jóias.
— Levou!?
— Sim senhora, levou! - A mísera inclinou a cabeça sobre o colo com um suspiro; e Paulo continuou: E ainda a senhora quer desculpá-la. Uma perversa!
— Não fales assim.
— Que é, então? Que lhe faltava aqui? Tinha até demais! Luxo?! - Exclamou curvando-se, com a face contraída, os olhos flamejantes, as mãos espalmadas nas coxas: Ah! Isso não, porque eu não havia de roubar. Isso não! - E pôs-se a passear pelo quarto. Desabafava. A sua cólera contida transbordava e, como na expansão duma válvula há o vapor que se liqüefaz, havia naquela fúria lágrimas disfarçadas; era o pranto que irrompia da cólera e a atitude infeliz de Dona Júlia concorria poderosamente para aquela fraqueza. Tomou, ao acaso, um livro na estante, folheou-o vagamente e, atirando-o à mesa, prorrompeu de novo: Quantas vezes protestei contra aquela mania da janela? Diga! Uma pouca-vergonha. As outras moças chegam à janela, é verdade, mas Violante era desde a manhã até as tantas da noite, todos os dias, até com chuva. Nem sei que parecia. E a senhora? A senhora sempre a defendê-la, porque era moça. Está aí.
— Mas tu queres agora culpar-me, Paulo? Eu podia ver?
— Justamente por isso.
— Ora, meu filho, se ela tinha essa idéia nem que eu ficasse agarrada à sua saia noite e dia havia de levá-la a efeito. Tinha de acontecer e quando Deus quer...
— Deus! Aí vem a senhora com Deus. Pois sim. Eu é que não sei como há de ser agora.
— O quê?
— A minha vida. Tenho o jornal... Da Escola não falo, porque lá não ponho mais os pés.
— Então não te formas?
— Eu? Eu, não! Mas não sei como há de ser. Como poderei cuidar das minhas obrigações tendo de andar por aí à procura de Violante? Não sei.
— Ela há de aparecer. Tenho fé em Deus.
— Vá esperando.
— Por que falas assim?! Nem parece que é tua irmã. Deixa lá, é sina de cada um.
— Ah! É sina de cada um. Pois sim...!
— É, meu filho: é sina de cada um.
Com tais palavras, para evitar as recriminações de Paulo, que não suportava "superstições e crendices", foi-se do quarto, arrastando os passos.
Locomotivas silvavam manobrando, os galos amiudavam nos quintais vizinhos. Era a madrugada. Paulo começou a despir-se, atirando a roupa desordenadamente. As artérias das têmporas latejavam-lhe túrgidas, sentia um grande peso no cérebro. Apagou o gás e, no escuro. sentado à beira da cama, com os pés nus roçando o soalho frio, pôs-se a arrepelar os cabelos e viu, na sombra, vagamente, a cena da fuga: a irmã, de preto, com o embrulho das jóias, a caminhar cautelosa, surdamente e desaparecer diluindo-se como uma névoa.
Deitou-se, cobriu-se, não tinha sono. E pensava: Onde iria? Como encontrá-la? Chegou-se mais à parede e, d'olhos fechados, meditava quando ouviu os arrancados soluços de Dona Júlia no quarto próximo. Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d'água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente.