Isto bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e não sei como há de ser...
— Eu pensarei nisso, meu pai - disse Mariana. refletindo.
— Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.
— E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho aquele dinheiro dos meus bezerros: são onze moedas de ouro menos um quarto.
— Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.
Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinômico de escrúpulos, ou repugnância.
Foi Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído em profundo cismar.
— Pois não toma o caldinho? - disse ela com tristeza.
— Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sozinho algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente aborrecido.
— Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria chamar.
Dissera isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.
Simão notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação da moça; mas não lhe disse palavra alguma.
E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O estilo vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que tenho dele, um galã num entre ato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que um usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Dist0 é que os mestres em romances se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosáica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas, em diferentes estações das estradas do país, carroças e folgadas parelhas de mulas para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bela fugitiva! A estradas, naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não tenho a certeza de que houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há, porque me dizem que há tudo.
Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que ele cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado.
A meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:
Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?
Com que agradeceria os desvelos de Mariana?
Se Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência de ambos?
Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante ferrador.
As relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta naquele dia. Má situação!
Lembrou-se de escrever à mãe. Que lhe diria ele? Como explicaria a sua residência naquela casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte misteriosa dos dois criados de Baltasar Coutinho?
Além de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava; e, a mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria o escassamente necessário para a jornada até Coimbra. Péssima situação!
Cansado de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes com um sono profundo,
E Mariana entrara pé ante pé na sala, e, ouvindo-lhe a respiração alta, aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre uma banqueta que adornava o quarto, pegou nela, e saiu pé ante pé. Abriu a carteira, viu papéis, que não soube ler, e num dos repartimentos duas moedas de seis vintéis. Foi restituir a carteira ao seu lugar, e tomou de um cabide as calças, colete e jaqueta à espanhola, do hóspede. Examinou os bolsos e não encontrou um ceitil.
Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de golpe, conversou longo tempo com o pai. João da Cruz escutou-a, contrariou-a, mas ia de vencida sempre pelas réplicas da filha, até que, a final, disse:
— Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou agora levantar a pedra da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos mil réis. Tanto faz um como outro: teu é ele todo.
Mariana deu-se pressa em ir à arca, donde tirou uma bolsa de linho com dinheiro em prata, e alguns cordões, anéis e arrecadas. Guardou o seu oiro numa boceta, e deu a bolsa ao pai.
João da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a sala do doente.
Acordou Simão.
— Não sabe!? - exclamou ela com semblante entre alegre e assustado, perfeitamente contrafeito.
— Que é, Mariana?
— Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.
— Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?
— Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.
— Isso espanta-me!... E não me escreveu?
— Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ela soubesse que o senhor aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu... Poderá ser?
— Poderá... Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar da morte dos homens.
— Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas. O pai disse que não tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar nisso... Vou-lhe buscar o caldinho, sim?
— Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma irmã.
Nã0 achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta à doçura que o rosto do mancebo exprimia.
Veio com o "caldinho" - diminuitivo que a retórica duma linguagem meiga sanciona; mas contra o qual protestava a larga e funda malga branca, ao lado da travessa com meia galinha loura, de gorda.
— Tanta coisa! - exclamou, sorrindo, Simão.
— Coma o que puder - disse ela corando. - Eu bem sei que os senhores da cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais pequena; e coma sem nojo, que esta malga nunca serviu, que a fui eu comprar à loja, por pensar que vossa senhoria não quisera ontem comer por se atrigar da outra.
— Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho vontade.
— Mas coma por eu lhe pedir... Perdoe o meu atrevimento... Faça de conta que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...
— Que o céu me dava em si a amizade duma irmã...
— Pois aí está...
Simão achou tão necessário à sua conservação o sacrifício, como ao contentamento da carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjetura de que era amado daquela doce criatura. Entre si dizia que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de tal afeição quando não tinha alma para lha premiar, nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-no os desvelos da gentil moça. Ninguém sente em si o peso do amor que se inspira e não comparte. Nas máximas aflições,