— Arriba! - esclamou João da Cruz - que não vão meter-se à estrada, se mataram o fidalgo.
Tinham vencido o chá, esbofados e ansiados, com as davinas aperradas. Os criados de Baltasar, ao invés da conjetura do ferrador, retrocediam pelo mesmo atalho, supondo que os companheiros de Simão iam adiante batendo os pontos azados à emboscada, ou se tinham retardado.
— Eles aí vêm! disse o arreeíro.
— Nós cá estamos - respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um cômoro. - Senta-te também, que eu não estou para correr atrás deles. Os assassinos, a dez passos, viram de frente erguerem-se os dois vulto, e ladearam cada qual para seu lado, um galgando os socalcos duma vinha e outro atirando-se a uns silveirais.
— Atira ao da esquerda - disse João da Cruz.
Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadáver. Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal onde se embrenhara.
A este tempo assomava Simão no teso donde lhe tinham atirado, e corria ao ponto onde ouvira o segundo tiro.
— É vossa senhoria, fidalgo - bradou o ferrador.
— Sou.
— Não o mataram?
— Creio que não - respondeu Simão.
— Este desalmado deixou fugir o melro - tomou João da Cruz - mas o meu lá está a pernear na vinha. Sempre lhe quero ver as trombas...
O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o cadáver, dizendo:
— Alma de cântaro, se eu tivesse duas clavinas, não ias sozinho para o inferno.
— Anda daí! - disse o arreeiro - deixa lá esse diabo, que o senhor doutor está ferido num ombro. Vamos depressa, que está o sangue a escorrer-lhe.
— Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima da ribanceira, e cuidei que eram vocês - disse Simão, enquanto o ferrador, com a destreza de hábil cirurgião, lhe enfaixava com lenços o braço ferido. - Parei o cavalo, e disse: "Olé! há novidade?" Logo que me não responderam, saltei para terra; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo. Quis saltar à ribanceira, mas não pude romper o mato. Dei uma voltar grande para achar subida, e foi então que dei fé de estar ferido.
— Isto é uma arranhadura - disse João da Cruz - olhe que eu sei disto, fidalgo! Estou afeito a curar muitas feridas.
— Nos burros, mestre João? - disse o ferido, sorrindo.
— E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não queria outro médico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe o meu corpo, que está uma rede de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com ceroto e vinagre sou capaz de ir ressuscitar aquela alma do diabo que ali está a escutar a cavalaria.
Nisto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha saltado o companheiro do morto.
João da Cruz, como galo de fino olfato, fitou a orelha e resmungou:
— Querem vocês ver que eles se armam!.
Dar-se-á caso que o outro ainda esteja por ali a tremer maleitas?
O rumor continuou, e logo um bando de pássaros rompeu dentre a folhagem, chilreando.
— O homem está ali - tornou o ferrador. - Passe-me cá uma pistola, senhor Simão!
Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande restolhada se fez entre as moitas de codessos e urzes.
— Ele estrinça lenha como um porco do monte! - exclamou o ferrador, - Ó cunhado, bate este mato com alguns penedos; quero ver sair o javali da moita!..
Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando a sebe, conseguira saltar ao campo por sobre a pedra dum agüeiro.
— Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! - bradou Simão ao ferrador.
— Pois o fidalgo já aí anda!? Então está fechado o cerco. Eu cá vou fazer de furão. Se este nos escapa, não há nada seguro neste mundo!
Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutínho, quando se atirara desamparado à brenha, deslocara um joelho, e caíra atordoado. O arreeiro não examinou o efeito do tiro, porque atirara à ventura, e achava natural que o fugitivo se não molestasse. Quando volveu a si do aturdimento da queda, o homem arrastou-se até encontrar um cercado de árvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada. Como os melros cacarejassem, esvoaçando, o criado de Baltasar retrocedeu para o mato, cuidando que aí escaparia; mas o arreeiro jogava enormes calhaus em todas as direções, e alguns acercavam mais que as balas do seu bacamarte. João da Cruz tirou do bolso da jaqueta um podão, e começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestas que se emaranhavam em redor do esconderijo. Já cansado, porém, e vendo o pouco fruto do trabalho, disse ao arreeiro:
— Petisca lume, vai ali dentro buscar um pouco de restolho seco, e vamos pegar fogo ao mato, que este ladrão há de morrer assado.
O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para fugir, rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo do restolho em que o arreeiro andava apanhando palha e Simão esperava o desfecho da montaria. Correram a um tempo o arreeiro e o acadêmico sobre ele, O fugitivo, sentindo-se alcançado, lançou-se de joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão, e dizendo que o amo o obrigaria àquela desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia direita ao peito, quando Simão lhe reteve o braço.
— Não se bate num homem ajoelhado! - disse o moço - Levanta-te, rapaz!
— Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada e estou aleijado para a minha vida!
Neste comenos chegou o ferrador, e exclamou:
— Pois esse tratante ainda está vivo!?
E correu sobre ele com o podão.
— Não mate o homem, senhor João! - disse o filho do corregedor'.
— Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar... hein?
— Com a forca?! - atalhou Simão.
— Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito? Lá vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar que desta vez tenho o baraço no pescoço. Não me faz jeito o negócio. Deixe-me cá com o homem...
— Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha não nos pode fazer mal.
— O quê! - redargüiu o ferrador - vossa senhoria é doutor, saberá muito, mas de justiça não sabe nada. e há de perdoar o meu atrevimento. Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa. As duas por três, uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castrod'ALre a mexer os pauzinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro.
— Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro-d'Aire - exclamou o homem.
— Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora...
— Isso! - acudiu o ferrador - Chame-me João da Cruz... para este maroto ficar bem certo de que sou o João da Cruz... Como efeito, não sei o que me parece vossa senhoria querer deixar com vida uma alma do diabo que lhe deu um tiro para o matar.
— Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis que não resistem.
— E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor doutor.
— Vamos embora - tornou Simão - deixemos por aí esse miserável.
Mestre João cismou alguns momentos, coçando a cabeça,