— Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspeda sozinha?! Bem se vê que é filha de funileiro!... Pois tinha tempo de ter prática do mundo, que tem andado por lá que farte... Eu havia de ir ao coro... Mas não vou, para lhe fazer companhia, menina.
— Vá, vá minha senhora, que eu fico bem sozinha - disse Teresa, com a esperança de poder desafogar em lágrimas a sua aflição.
— Não vou, ....... A menina aqui estarrecia de medo; mas a prelada não tarda aí. Ela, se pode escapar-se do coro, não para lá muito tempo. Apostar que ela lhe esteve a falar mal de mim?
— Não, minha senhora, pelo contrário...
— Ora, diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não fala bem de ninguém. Para ela tudo são libertinas e bêbedas.
— Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma freira,
— E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja viva. Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados como de amantes ela tem tido! Faz lá uma pequena idéia, menina!...
A escrivã bebeu um cálice do vinho da sua prelada, e continuou:
— Faz lá uma pequena idéia! Ela é velhíssima como a sé. Quando eu professei, já ela era velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou freira há vinte e seis anos. Calcule a menina quantas arrobas de esturrínho ela tem atulhado naqueles narizes! Pois olhe, quer me creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão, que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira, à nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho imensa pena de ver a menina hospedada em casa desta hipócrita. Não se deixe levar das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que seu pai lhe mandou falar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas olhe, minha filha, se quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias e o meu quarto, se para lá quiser ir escrever. Se tem alguém que lhe escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu chamo-me Dionísia da Imaculada Conceição.
— Muit9 agradecida, minha senhora - disse Teresa, animada pelo oferecimento. - Quem me dera poder mandar um recado a uma pobre que mora no beco do...
— O que quiser, menina. Eu mando lá logo que for dia. Esteja descansada. Não se fie de alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a organista são duas falsas. Não lhes dê trela, que, se as admite à sua confiança, está perdida. Ai vem a lesma... Falemos noutra coisa...
A prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:
— Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento quando se tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa... Aí! eras tu, menina? Olha se estivéssemos a falar mal de ti!
— Eu sei que tu nunca falas mal de mim - disse a prelada, piscando o olho a Teresa. - Aí está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer das tuas boas qualidades...
— Pois o que eu disse de ti - respondeu sóror Dionísia da Imaculada Conceição - não precisas de perguntar porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer o mesmo das outras que desonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado numa meada, que é mesmo coisa de pecado!
— Então não vais ao coro, Nini? - tornou a prioresa.
— Já agora é tarde... Tu absolves-me da falta, sim?
— Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um copinho...
— Do estomacal?
— Pudera!
Dionisia cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela deixar a prelada na sua hora de oração.
Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos, enquanto se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de Manchique.
Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira falar dos mosteiros como de um refúgio da virtude, da inocência e das esperanças imorredoiras. Algumas cartas lera de sua tia, prelada em Monchique, e por elas formara conceito do que devia ser uma santa. Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer às velhas e devotas fidalgas de Víseu virtudes, maravilhas de caridade, e até milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de fugir dali!
A cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alcova. separada, com cortinas de cassa.
Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe a menina se poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que no dia seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua filha não escrevesse; assim mesmo, ajuntou ela, que lho não proibiria, se tivesse tinteiro e papel na cela.
Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa a meia voz, Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não teria ela muita razão de queixa, porque a devota monja, ao segundo Padre-nosso, cabeceava de modo que já não atinou com a primeira Ave-Maria. Levantou-se, cambaleando uma mesura às imagens do santuário, foi deitar-se, e pegou a ressonar.
Teresa afastou sutilmente as cortinas do quarto, e tirou de entre o seu fato o tinteiro de tarraxa e o papel.
A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que Teresa pusera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lhe minuciosamente os sucessos daquele dia. A carta rematava assim:
"Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo aos que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que meu pai tome dír-ta-ei logo, podendo, ou quando puder. A falta das minhas noticias deves atribuí-la sempre ao impossível. Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como isto é triste, meu querido amigo!... Adeus".
VIII
Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com que seu pai vinha laureado de todas as feiras e romarias.
— Não há ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça, quando eu fui à Senhora dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosqueou e rapou o casco à navalha - disse o ferrador. - Pelo que vejo, o sangue do fidalgo deu volta ao estômago da rapariga!... Estamos então bem aviados! Eu tenho cá a minha vida, e queria que ela fosse a enfermeira do meu doente... És, ou não és, rapariga? - disse ele à filha quando ela abriu os olhos, com semblante de envergonhada da sua fraqueza.
— Serei com muito gosto, se o pai quiser.
— Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre e mais vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa. Conversa com ele, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito, que não é bom quando se está fraco do miolo. E vossa senhoria não tenha aquelas de cerimônia, nem me diga à Mariana - a menina isto, a menina aquilo. É - rapariga, da cá um caldo; rapariga, lava-me o braço, da cá as compressas - e nada de políticas. Ela está aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que, se não fosse o pai de vossa senhoria, já ela há muito tempo que andava por aí às esmolas, ou pior ainda. E verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos ali a suar na bigorna há dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei de minha mãe, que Deus haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu fosse à forca ou pela barra fora, vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.
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