— Pois toma sentido.
— Não precisa dizer duas vezes.
Ouve. Das duas uma: ou poderás falar com ela hoje, ou só amanhã...
— Hoje... agora mesmo. Nestas coisas Tobias não cochila: com licença de meu senhor, eu cá sou doutor nisto; meus parceiros me chamam orelha de cesto, pé de coelho e boca de taramela. Vá dizendo o que quiser, que em menos de dez minutos minha senhora saberá tudo; o recado de meu senhor é uma carambola que, batendo no meu ouvido vai logo bater no da senhora d. Joaninha.
— Pois dize-lhe que o moço que se sentar na última cadeira da 4ª coluna da superior, que assoar-se com uni lenço de seda verde, quando ela para ele olhar, se acha loucamente apaixonado de sua beleza etc., etc., etc.
— Sim, senhor, eu já sei o que se diz nessas ocasiões: o discurso fica por minha conta.
— E amanhã, ao anoitecer, espera-me na porta de tua casa.
— Pronto, lesto e agudo, repetiu de novo o crioulo.
— Eu recompensar-te-ei, se fores fiel.
— Mais pronto, mais lesto e mais agudo!
— Por agora toma estes cobres.
— Oh, meu senhor! Prontíssimo, lentíssimo e agudíssimo.
Ignoro de que meios se serviu o Tobias para executar sua comissão. O que sei é que antes de começar o 2.° ato já eu havia feito o sinal, e então comecei a pôr em ação toda a mímica amantética que me lembrou: o namoro estava entabulado; embora a moça não correspondesse aos sinais do meu telégrafo, concedendo-me apenas amiudados e curiosos olhares, isso era já muito para quem a via pela primeira vez.
Finalmente, sr. Augusto dos meus pecados, o negócio adiantou-se, e hoje, tarde me arrependo e não sei como me livre de semelhante entaladela, pois o Tobias não me sai da porta. Já não tenho tempo de exercer o meu classismo; há três meses que não como empadas e, apesar de minhas economias, ando sempre com as algibeiras a tocar matinas. Para maior martírio a minha querida é a sra. Joana, prima de Filipe.
Para compreenderes bem o quanto sofro, aqui te escrevo algumas das principais exigências da minha amada romântica.
1º Devo passar por defronte de sua casa duas vezes de manhã e duas à tarde. Aqui, vês bem, principia a minha vergonha, pois não há pela vizinhança gordurento caixeirinho que se não ria nas minhas barbas quatro vezes por dia.
2º Devo escrever-lhe, pelo menos, quatro cartas por semana, em papel bordado, de custo de 400 réis a folha. Ora, isto é detestável, porque eu não sei onde vá buscar mais cruzados para comprar papel, nem mais asneiras para lhe escrever.
3º Devo tratá-la por "minha linda prima" e ela a mim por "querido primo". Daqui concluo que a sra. d. Joana leu o Faublas. Boa recomendação!...
4º Devo ir ao teatro sempre que ela for, o que sucede quatro vezes no mês; o mesmo a respeito de bailes. Esta despesa arrasa-me a mesada terrivelmente.
5º Ao teatro e bailes devo levar no pescoço um lenço ou manta da cor da fita que ela porá em seu vestido ou no cabelo, o que, com antecedência, me é participado. Isto é um despotismo detestável.
Finalmente, ela quer governar os meus cabelos, as minhas barbas, a cor de meus lenços, a minha casaca, a minha bengala, os botins que calço e, por último, ordenou-me que não fumasse charutos de Havana nem de Manilha, porque era isto falta de patriotismo.
Para bem rematar o quadro das desgraças que me sobrevieram com a tal paixão romântica que me aconselhaste, d. Joana, dir-te-ei, mostra amar-me com extremo, e, no meio de seus caprichos de menina, dá-me prova do mais constante e desvelado amor; mas que importa isso, se eu não posso pagar-lhe com gratidão?... Vocês com seu romantismo a que me não posso acomodar, a chamariam "pálida". Eu, que sou clássico em corpo e alma e que, portanto, dou os coisas o seu verdadeiro nome, a chamarei sempre "amarela".
Malditos românticos, que têm crismado tudo e trocado em seu crismar os nomes que melhor exprimem suas idéias!...
O que outrora se chamava, em bom português, moça feia, os reformadores dizem: menina simpática!... O que em uma moça era antigamente desenxabimento, hoje é ao contrário: sublime languidez!... Já não há mais meninas importunas e vaidosas. As que forem, chamam-se agora espirituosas! A escola dos românticos reformou tudo isso, em consideração ao belo sexo.
E eu, apesar dos tratos que dou a minha imaginação, não posso deixar de convencer-me que a minha linda prima é (aqui para nós) amarela e feia como uma convalescente de febres perniciosas.
O que, porém, se torna sobretudo insofrível é o despotismo que exerce sobre mim o brejeiro do Tobias!...
Entende que todos os dias lhe devo dar dinheiro e persegue-me de maneira tal que, para ver-me livre dele, escorrego-lhe cum quibus, a despeito da minha má vontade.
O Tobias está no caso de muitos que, grandes e excelentes parladores, são péssimos financeiros na prática. Como eles fazem ao país, faz Tobias comigo, que sempre depois de longo discurso me apresenta um déficit e pede-me um crédito suplementar.
Eis aqui, meu Augusto, o lamentável estado em que me acho. Lembra-te que foram os teus conselhos que me obrigaram a experimentar uma paixão romântica; portanto, não so por amizade, como por dever, conto que me ajudarás no que te vou propor.
Eu preciso de um pretexto mais ou menos razoável para descartar-me de tal pálida.
Ela vai passar conosco dois dias na ilha de... Aí podemos levar a efeito, e com facilidade, o meu plano: ele é de simples compreensão e de fácil execução.
Tu deverás requestar, principalmente a minha vista, a tal minha querida. A inda que ela não te corresponda, persegue-a. Não te custará muito isso, pois que é o teu costume. Nisto se limita o teu trabalho, e começará então o meu, que é mais importante.
Ver-me-ás enfadado, talvez que te trate com rispidez, e que te dirija alguma graça pesada, mas não farás caso e continuarás com a requesta para diante.
Eu então irei as nuvens... Desesperado, ciumento e delirante, aproveitarei o primeiro instante em que estiver a sós com d. Joaninha, e farei um discurso forte e eloqüente contra a inconstância e volubilidade das mulheres. No meio de meus transportes, dou-me por despedido de amores com ela, e pulando fora de tal paixão romântica, correrei a apertar-te contra meu peito, como teu amigo e colega do coração — Fabrício".
— E esta!... exclamou Augusto, depondo a carta sobre a mesa e sorvendo uma boa pitada de rapé de Lisboa. E esta!...
Acabando de sorver a pitada, o nosso estudante desatou a rir como um doido. Rir-se-ia a noite inteira talvez, se não fosse interrompido pelo Rafael, que o vinha chamar para tomar chá.
Capítulo III: Manhã de sábado
Seriam pouco mais ou menos onze da manhã, quando o batelão de Augusto abordou à ilha de... Embarcando às dez horas, ele designou ao seu palinuro o lugar a que se destinava, e deitou-se para ler mais à vontade o Jornal do Comércio. Soprava vento fresco e, muito antes do que supunha, Augusto ergueu-se, ouvindo a voz de Leopoldo que o esperava na praia.
— Bem-vindo sejas, Augusto. Não sabes o que tens perdido...
— Então... muita gente, Leopoldo?
— Não: pouca; mas escolhida.
No entanto, Augusto pagou, despediu o seu bateleiro, que se foi remando e cantando com seus companheiros. Leopoldo deu-lhe o braço, e, enquanto por uma bela avenida, orlada de coqueiros, se dirigiam à elegante casa que lhes ficava a trinta braças do mar, o curioso estudante recém-chegado examinava o lindo quadro que a seus olhos tinha e do qual, para não sermos prolixos, daremos idéia em duas palavras. A ilha de... é tão pitoresca como pequena. A casa da avó de Filipe ocupa exatamente o centro dela. A avenida por onde iam