— O quê?
— Cortar-lhe os víveres!
— Cortar-lhe os víveres?
— O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense, hem? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é dos meus, homem de boas idéias, vai pô-lo fora do cartório... E que escreva então Comunicados!
Amaro teve horror àquela intriga rancorosa:
— Deus me perdoe, Natário, mas isso é perder o rapaz.
— Enquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o largo, padre Amaro, não o largo!
— Oh, Natário! oh, colega! isso é de pouca caridade... Isso não é de cristão... E então aqui que Deus está a ouvi-lo...
— Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é a resmungar Padre-Nossos. Para ímpios não há caridade! A Inquisição atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacá-los pela fome. Tudo é permitido a quem serve uma causa santa... Que se não metesse comigo!
Iam a sair; mas Natário deitou um olhar para o caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:
— Quem está ali?
— O Morais, disse Amaro.
— O gordo, picado das bexigas?
— Sim.
— Boa besta!
E depois de um silêncio:
— Foram os Ofícios do Morais... Eu nem dei por isso, ocupado cá na minha campanha... E a viúva fica rica. É generosa, é presenteadora... Quem a confessa é o Silvério, hem? Tem as melhores pechinchas de Leiria, aquele elefante!
Saíram. A botica do Carlos estava fechada, o céu muito escuro.
No largo, Natário parou:
— Resumindo: o Dias fala à S. Joaneira, e você fala à pequena. Eu por mim me entenderei com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral. Encarreguem-se vocês do casamento, que eu me encarrego do emprego! - E batendo no ombro do pároco jovialmente: - É o que se pode dizer atacá-lo pelo coração e pelo estômago! E adeusinho, que as pequenas estão à espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado com um defluxo!... É fraquita, aquela rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu em a vendo murcha até perco logo o sono. Que quer você? Quando se tem bom coração... Até amanhã, Amaro.
— Até amanhã, Natário.
E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na Sé.
Amaro entrou em casa ainda um pouco trêmulo, mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa, para se compenetrar bem dessa responsabilidade estimada:
— É do meu dever! É do meu dever!
Como cristão, como pároco, como amigo da S. Joaneira, o seu dever era procurar Amélia, e, com simplicidade, sem paixão interessada, contar- lhe que fora João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o Comunicado.
Foi ele! Difamou os íntimos da casa, sacerdotes de ciência e de posição; desacreditou-a a ela; passa as noites em deboche na pocilga do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; há seis anos que se não confessa! Como diz o colega Natário, é uma fera! Pobre menina! Não, não podia casar com um homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor a direção salutar, e, como diz o santo padre Crisóstomo, "amadureceria a sua alma para o inferno"! Ele não era seu pai, nem seu tutor; mas era pároco, era pastor: - e se a não subtraísse àquele destino herético pelos seus conselhos graves, pela influência da mãe e das amigas, - seria como aquele que tem a guarda dum rebanho numa herdade, e abre indignamente a cancela ao lobo! Não, a Ameliazinha não havia de casar com o ateu!
E o seu coração então batia forte sob a efusão daquela esperança. Não, o outro não a possuiria! Quando viesse a apoderar-se legalmente daquela cinta, daqueles peitos, daqueles olhos, daquela Ameliazinha - ele, pároco, lá estava para dizer alto: Para trás, seu canalha! isto aqui é de Deus!
E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena à salvação! Agora o Comunicado estava esquecido, o senhor chantre tranquilizado: daí a dias poderia voltar sem susto à Rua da Misericórdia, recomeçar os deliciosos serões - apoderar-se de novo daquela alma, formá-la para o Paraíso...
E aquilo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus motivos (e dizia-o alto, para se convencer melhor) eram muito retos, muito puros: aquilo era um trabalho santo para a arrancar ao Inferno: ele não a queira para si, queria-a para Deus!... Casualmente, sim, os seus interesses de amante coincidiam com os seus deveres de sacerdote. Mas se ela fosse vesga e feia e tola, ele iria igualmente à Rua da Misericórdia, em serviço do Céu, desmascarar o Sr. João Eduardo, difamador e ateu!
E, sossegado por esta argumentação, deitou-se tranquilamente.
Mas toda a noite sonhou com Amélia. Tinha fugido com ela: e ia-a levando por uma estrada que conduzia ao Céu! O diabo perseguia-o; ele via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos os delicados seios das nuvens. E ele escondia Amélia no seu capote de padre, devorando-a por baixo de beijos! Mas a estrada do Céu não findava. - "Onde é a porta do paraíso?" perguntava ele a anjos de cabeleiras de ouro que passavam, num doce rumor de asas, levando almas nos braços. E todos lhe respondiam: - "Na Rua da Misericórdia, na Rua da Misericórdia número nove!" Amaro sentia-se perdido; um vasto éter cor de leite, penetrável e macio como uma penugem de ave, envolvia-o; e ele procurava debalde uma tabuleta de hospedaria! Por vezes resvalava junto dele um globo reluzente de onde saía o rumor duma criação; ou um esquadrão de arcanjos, com couraças de diamantes, erguendo alto espadas de fogo, galopavam num ritmo nobre...
Amélia tinha fome, tinha frio. "Paciência, paciência, meu amor!" dizia-lhe ele. Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mão uma palma verde. "Onde está Deus, nosso pai?" perguntou-lhe Amaro, com Amélia conchegada ao peito. A figura disse: - "Eu fui um confessor, e sou um santo: os séculos passam, e imutavelmente, sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me um êxtase igual! Nenhuma tinta modifica esta luz para sempre branca; nenhuma sensação sacode o meu ser para sempre imaculado; e imobilizado na bem-aventurança, sinto a monotonia do Céu pesar-me como uma capa de bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas diferentes da Terra - ou bracejar, sob as variedades da dor, nas chamas do purgatório!"
Amaro murmurou: "Bem fazemos nós em pecar!" - Mas Amélia desfalecia fatigada... "Durmamos, meu amor!" E, deitados, viam estrelas flutuando numa poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo. Então nuvens começaram a dispor-se em torno deles, em pregas de cortinados, dando um perfume de sachets: Amaro pousou a sua mão sobre o peito de Amélia: um enleio muito doce enervava-os: enlaçaram-se, os seus lábios pegavam-se úmidos e quentes: - "Oh, Ameliazinha! " murmurava ele. - "Amo- te, Amaro, amo-te! " suspirava ela. - Mas de repente as nuvens afastaram- se como os cortinados dum leito; e Amaro viu diante o diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca numa risada muda. Com ele estava outro personagem: era velho como a substância; nos anéis dos seus cabelos vegetavam florestas; a sua pupila tinha a vastidão azul dum oceano; e nos dedos abertos com que cofiava a barba infindável, caminhavam, como em estradas, filas de raças humanas. - "Aqui estão os dois sujeitos", dizia-lhe o diabo retorcendo a cauda. E por trás Amaro via aglomerarem-se legiões de santos e de santas. Reconheceu S. Sebastião com as suas setas cravadas; Santa Cecília trazendo na mão o seu órgão; por entre eles sentia balarem os rebanhos de S. João; e no meio erguia-se o bom gigante S. Cristóvão apoiado ao seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não se podia desenlaçar de Amélia, que chorava muito baixo; os seus corpos estavam sobrenaturalmente colados; e Amaro, aflito, via que as saias dela levantadas descobriam os seus joelhos brancos. - "Aqui estio os dois sujeitos", dizia o diabo ao velho personagem