Houve uma pausa consternada. E Natário, plantado no meio da saleta com as mãos enterradas nas algibeiras, exclamou:
— Que lhes parece esta à última hora, hem?
O cônego ergueu-se pachorrentamente:
— Olhe, colega, disse, entre mortos e feridos há-de escapar alguém. E a senhora não se fique ai com essa cara de Mater dolorosa, e mande servir o chá, que é o importante.
— Eu lá disse ao padre Saldanha... - começou Natário perorando.
Mas o cônego interrompeu-o com força:
— O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós às torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes, caluda.
O chá foi silencioso. O cônego, a cada bocado de torrada, respirava afrontado, franzia muito o sobrolho: a S. Joaneira, depois de falar da D. Maria da Assunção que estava mal do catarro, ficou toda murcha, com a testa sobre o punho. Natário, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casacão.
— E quando vem essa boda? exclamou ele, estacando subitamente diante de Amélia e do escrevente, que tomavam o chá sobre o piano,
— Um dia cedo, respondeu ela sorrindo.
Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu cebolão:
— São horas de me ir chegando à Rua das Sousas, minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.
Mas a S. Joaneira não consentiu. Credo, estavam todos monos como se estivessem de pêsames!... Que fizessem um quino para espairecer... - O cônego porém, saindo do seu torpor, disse com severidade:
— Está a senhora muito enganada, ninguém está mono. Não há razões senão para estar alegre. Pois não é verdade, senhor noivo?
João Eduardo mexeu-se, sorriu:
— Eu cá por mim, senhor cônego, não tenho razão senão para estar feliz.
— Pois está claro, disse o cônego. E agora Deus lhes dê boas-noites a todos, que eu vou quinar para vale de lençóis. E o Amaro também.
Amaro foi apertar silenciosamente a mão de Amélia, - e os três padres desceram calados.
Na saleta a vela ainda ardia com um morrão. O cônego entrou a buscar o seu guarda-chuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:
— Eu, colegas, não quis assustar há pouco a pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses falatórios... É o diabo!
— É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natário, abafando a voz.
— É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.
Estavam de pé no meio da saleta. Fora o vento uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima Amélia cantarolava a Chiquita.
Amaro recordava outras noites felizes em que ele, triunfante e sem cuidados, fazia rir as senhoras, - e Amélia, gorjeando Ai chiquita que si, revirava-lhe olhares rendidos...
— Eu, disse o cônego, os colegas sabem, tenho que comer e beber, não me importa... Mas é necessário manter a honra da classe!
— E não carece dúvida, acrescentou Natário, que se há outro artigo e mais falatórios, estala com certeza o raio...
— Olha o padre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!
Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do escrevente.
Amaro rosnou com rancor:
— Grande galhofa lá em cima!...
Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natário duma chuva miudinha.
— Olha que noite! exclamou furioso.
Só o cônego tinha guarda-chuva: e abrindo-o devagar:
— Pois meninos, não há que ver, estamos em calças pardas...
Da janela de cima alumiada, saiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O cônego soprava, agarrando fortemente o guarda- chuva contra o vento; ao lado Natário, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça caída, num abatimento de derrota; e enquanto os três padres, assim agachados sob o guarda-chuva do cônego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por trás a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!
XI
Daí a dias, os frequentadores da botica, na Praça, viram com espanto o padre Natário e o doutor Godinho conversando em harmonia, à porta da loja de ferragens do Guedes. O recebedor, - que era escutado com deferência em questões de política estrangeira, - observou-os com atenção através da porta vidrada da farmácia, e declarou com um tom profundo "que não se admiraria mais se visse Vítor Manuel e Pio IX passearem de braço dado"!
O cirurgião da Câmara porém não estranhava aquele "comércio de amizade". - Segundo ele, o último artigo da Voz do Distrito, evidentemente escrito pelo doutor Godinho (era o seu estilo incisivo, cheio de lógica, atulhado de erudição!), mostrava que a gente da Maia se queria ir aproximando da gente da Misericórdia. O doutor Godinho (na expressão do cirurgião da Câmara) fazia tagatés ao governo civil e ao clero diocesano: a última frase do artigo era significativa - "Não seremos nós que regatearemos ao clero os meios de exercer proficuamente a sua divina missão"!
A verdade era (como observou um indivíduo obeso, o amigo Pimenta), que se não havia ainda paz já havia negociações - porque, na véspera ele vira com aqueles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre Natário saindo de manhã muito cedo da redação da Voz do Distrito!
— Oh amigo Pimenta, essa é fabricada!
O amigo Pimenta ergueu-se com majestade, deu um puxão grave aos cós das calças, e ia indignar-se - quando o recebedor acudiu:
— Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu noutro dia vi o patife do Agostinho fazer grande barretada ao padre Natário. E que o Natário traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gosto de observar as pessoas... Pois senhores, o Natário que nunca aparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre aí com o nariz pelas lojas... Depois a grande amizade com o padre Silvério... Hão-de reparar que são ambos certos aí na Praça às Ave-Marias... E é negócio com a gente do doutor Godinho... O padre Silvério é o confessor da mulher do Godinho... Umas coisas pegam com as outras!
Era muito comentada, com efeito, a nova amizade do padre Natário com o padre Silvério. Havia cinco anos, tinha ocorrido na sacristia da Sé, entre os dois eclesiásticos, uma questão escandalosa: Natário correra até de guarda-chuva erguido para o padre Silvério, quando o bom cônego Sarmento, banhado em lágrimas, o reteve pela batina, gritando: "Oh colega, que é a perdição da religião! ". Desde então, Natário e Silvério não falavam - com desgosto de Silvério, um bonacheirão, duma obesidade hidrópica, que, segundo diziam as suas confessadas, "era todo afeição e perdão". Mas Natário, seco e pequeno, tinha tenacidade no rancor. Quando o Sr. chantre Valadares começou a governar o bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloquência a necessidade "de manter a paz na Igreja", de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e Pólux, empurrou Natário com uma brandura grave para os braços do padre Silvério - que o teve um momento sepultado na vastidão do peito e do estômago, murmurando todo comovido:
— Todos somos irmãos, todos somos irmãos!
Mas Natário, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelão, as