— E também, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dor de ouvidos, que uma das minhas sobrinhas, coitada, está como doida, colega!
O bom Silvério, esquecendo decerto que ainda nessa manhã vira as duas sobrinhas de Natário sãs e satisfeitas como dois pardais, apressou-se a escrever a receita, todo feliz de utilizar os seus queridos estudos de medicina caseira; e murmurava, banhado de riso:
— Ora que alegria, colega, vê-lo aqui de novo nesta sua casa!
A reconciliação foi tão pública - que o cunhado do Sr. barão de Via Clara, bacharel de grandes dotes poéticos, lhe dedicou uma daquelas sátiras que ele intitulava Ferrões, que iam manuscritas de casa em casa, muito saboreadas e muito temidas; e chamara à composição, tendo presente decerto a figura dos dois sacerdotes: Famosa Reconciliação do Macaco e da Baleia! Era com efeito frequente, agora, ver a pequena figura de Natário gesticulando e saltitando ao lado do vulto enorme e pachorrento do padre Silvério.
Uma manhã mesmo os empregados da administração (que era então no Largo da Sé) gozaram muito, observando da sacada os dois padres que passeavam no terraço ao tépido sol de Maio. O senhor administrador, - que passava as horas da repartição namorando com um binóculo, por trás da vidraça do seu gabinete, a esposa do Teles, alfaiate - começara subitamente a dar gargalhadas á janela: o escrivão Borges correu logo, de pena na mão, à varanda, a ver de que ria sua senhoria, e, muito divertido, a fungar, chamou à pressa o Artur Couceiro que estava copiando, para estudar à guitarra, uma canção da Grinalda; o amanuense Pires, severo e digno, aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho de seda, com horror às correntes de ar; e em grupo, de olho arregalado, observavam os dois padres, que tinham parado à esquina da igreja. Natário parecia excitado; procurava decerto persuadir, abalar o padre Silvério; e em bicos de pés, plantado diante dele, agitava freneticamente as mãos muito magras. Depois, subitamente, apoderou-se-lhe do braço, arrastou-o ao comprido do terraço lajeado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto largo e desolado, como atestando a perdição possível dele, da Sé ao lado, da cidade, do universo em redor; o bom Silvério, com os olhos muito abertos, parecia apavorado. E recomeçaram a passear. Mas Natário exaltava-se; dava recuões bruscos, atirava estocadas com um longo dedo ao vasto estômago de Silvério, batia patadas furiosas nas lajes polidas; e de repente, de braços pendentes, mostrava-se acabrunhado. Então o bom Silvério falou um momento com a mão espalmada sobre o peito; imediatamente, a face biliosa de Natário iluminou-se; pulou, bateu no ombro do colega palmadinhas de muito júbilo, - e os dois sacerdotes entraram na Sé, chegados e rindo baixinho.
— Que patuscos! disse o escrivão Borges, que detestava sotainas.
— Aquilo tudo é a respeito do jornal, disse Artur Couceiro, vindo retomar o seu trabalho lírico. O Natário não sossega enquanto não souber quem escreveu o Comunicado; disse-o ele em casa da S. Joaneira... E a coisa pelo Silvério vai bem, que é o confessor da mulher do Godinho.
— Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o ofício que compunha, remetendo para Alcobaça um preso - que ao fundo da saleta, entre dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e embrutecido, com uma face de fome e as mãos em ferros.
Dai a dias tinha havido na Sé o Ofício de corpo presente pelo rico proprietário Morais, que morrera dum aneurisma, e a quem sua esposa (em penitência decerto dos desgostos que lhe dera com a sua afeição desordenada por tenentes de infantaria), estava fazendo, como se disse, "exéquias de pessoa real". - Amaro desvestira-se, e na sacristia, à luz dum velho candeeiro de latão, escrevia assentos atrasados, quando a porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natário disse:
— Ó Amaro, você está aí?
— Que temos?
O padre Natário fechou a porta, e atirando os braços para o ar:
— Grande novidade, é o escrevente!
— Que escrevente?
— O João Eduardo! É ele! É o liberal! Foi ele que escreveu o Comunicado!
— Que me diz você? fez Amaro atônito.
— Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escrito pela letra dele. O que se chama ver! Cinco tiras de papel!
Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natário.
— Custou, exclamou Natário. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever outro! O Sr. João Eduardo! O nosso rico amigo Sr. João Eduardo!
— Você está certo disso?
— Se estou certo! Estou a dizer-lhe que vi, homem!
— E como soube você, Natário?
Natário dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos ombros, arrastando as palavras:
— Ah, colega, lá isso... Os comos e os porquês... Você compreende... Sigillus magnus!
E com uma voz aguda de triunfo, a largos passos pela sacristia:
— Mas ainda isto não é nada! o Sr. Eduardo, que nós víamos ali na casa da S. Joaneira, tão bom mocinho, é um patife antigo. É o intimo do Agostinho, o bandido da Voz do Distrito! Está metido na redação até altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser ateu... Há seis anos que se não confessa... Chama-nos a canalha canônica... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma fera!
Amaro, escutando Natário, arrumava atarantadamente, com as mãos trêmulas, papéis no gavetão da escrivaninha.
— E agora?... perguntou.
— Agora? exclamou Natário. Agora é esmagá-lo!
Amaro fechou o gavetão, e, muito nervoso, passando o lenço pelos lábios secos:
— Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com um homem desses... Um perdido!
Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silêncio, o velho relógio da sacristia punha o seu tiquetaque plangente. Natário tirou da algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
— Desmanchar-lhe o casamentozinho, hem?
— Você acha? perguntou sofregamente Amaro.
— Caro colega, é uma questão de consciência... Para mim era uma questão de dever! Não se pode deixar casar a pobre pequena com um brejeiro, um pedreiro-livre, um ateu...
— Com efeito! com efeito! murmurava Amaro.
— Vem a calhar, hem? fez Natário; e sorveu com gozo a pitada. Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar a igreja; vinha perguntar a suas senhorias se demoravam.
— Um instante, Sr. Domingos.
E, enquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do pátio, os dois padres muito chegados falavam baixo.
— Você vai ter com a S. Joaneira, dizia Natário. Não, escute, é melhor que lhe fale o Dias; o Dias é que deve falar á S. Joaneira. Vamos pelo seguro. Você fale à pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha fora de casa! - E ao ouvido de Amaro: - Diga à rapariga que ele vive ai de casa e pucarinho com uma desavergonhada!
— Homem! disse Amaro recuando, não sei se isso é verdade!
— Há-de ser. Ele é capaz de tudo. E depois é um meio de levar a pequena.
E foram descendo a igreja atrás do sacristão, que fazia tilintar o seu molho de chaves, pigarreando grosso.
Nas capelas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao centro, entre quatro fortes tocheiras de grosso morrão, estava a essa, com o largo pano de veludilho cobrindo o caixão do Morais, recaindo em pregas franjadas; à cabeceira tinha uma larga coroa de perpétuas;