Até demais.
Isso me deu uma sensação de desconforto. As coisas pareciam não se conectar, era quase assustador.
Desliguei as luzes interiores e olhei para a bússola brilhante.
Hero entrou na ponte, parecendo pensativo e deslocado.
–Bom dia, tutti – eu disse a ele —Eu pensei que havia fechado a porta.
O cachorro tinha uma maneira desdenhosa de estreitar os olhos, se virou para olhar algum objeto qualquer, como se fosse mais interessante para ele do que eu. E ele odiava quando eu o chamava de tutti.
Ele se aproximou do leme e sentou-se no rabo, perto de mim, sem emitir nenhum som. Isso era realmente estranho, o cachorro nunca se importou muito comigo e raramente me procurava.
O que o estava incomodando?
–Por que não está com Rachel?
Ele me deu uma expressão que se traduzia aproximadamente em: “Saxon, cale a boca e olhe lá pra fora.” Algo estava acontecendo.
Muito além da proa do navio, a paisagem marítima mudou diante dos meus olhos, o sol nasceu ao mesmo tempo que a lua caiu, me dando a estonteante sensação de rotação terrestre. Em todos os meus anos no mar, nunca tinha visto nada assim, o sol e a lua estavam de frente um para o outro na face da Terra, comigo de pé diretamente na linha de visão deles. O tempo foi suspenso e os trinta e cinco anos da minha vida de brinquedo se transformaram em uma mancha pictórica, não maior do que os fractais de uma gota transparente caindo no preciso centro do Oceano Atlântico.
A lua afundou no mar, o sol iluminou o horizonte oriental e o Borboleta navegou atravessando um mar calmo e quase morto.
O tempo passou, não saberia precisar quanto, procurei por Hero, mas ele já havia ido, deixando-me com minha perplexidade.
Duas horas depois, quando meu turno terminou e o Sr. Choy assumiu meu lugar, fui procurar Cian e contar a ela sobre minha experiência. Ela era a única pessoa a bordo que entenderia meus sentimentos de desamparo diante daqueles eventos.
Imagine minha surpresa quando vi Doki em seu lugar habitual, não portava seu violão, mas tinha os cabelos recém-cortados, muito bem penteados e cheios de vitalidade ao lado de um pente marrom e uma tesoura familiar. Com o cabelo selvagem domado, e até a barba grisalha aparada e penteada, ele ficou com uma perfeita apresentação profissional. Mas isso não foi nem metade da minha surpresa, ao seu lado e sob os olhos do professor errante, Cian praticava acordes no violão antigo!
Meu primeiro impulso foi marchar até lá e dizer algo ridiculamente insano, talvez um comentário grosseiro sobre o cabelo impetuoso ou uma observação humorística sobre os sons terrivelmente desajeitados vindos do instrumento. Mas a voz da razão me mandou esperar um momento. Assim o fiz. Antes que qualquer um deles pudesse me notar no caminho que levava ao canto musical, eu me virei abruptamente para a cabine principal para ver se encontraria uma xícara de chá ou uma garrafa com alguém que ouvisse minha lamentável história.
Infelizmente, encontrei o homem das peles, Stanley Dortworthy, bebendo meu chá e conversando com minha irmã rapsódica.
Kaitlin me deu um oi alegre e entrou na cozinha para encontrar um copo vazio.
– Você sabia – disse ela por cima do ombro enquanto infundia uma peneira de folhas de pekoe usadas – que Stanley também está a caminho da Riviera?
Suponho que qualquer homem possa descrever Kaitlin como amável, de certa forma grega, com características delicadamente esculpidas, esse tipo de coisa. Mas um irmão conhece a alma da mulher que vive atrás daqueles olhos azuis angelicais, ele a ama por seu coração e pela confiança que ela deposita nele, não por sua beleza.
– Não – eu disse, sentando em uma cadeira em frente ao Sr. petulancia – Quando “Stanley” decidiu fazer isso? ]
Pronunciei seu nome desdenhosamente, preferindo ignorar o homem do que sofrer com sua total falta de capacidade intelectual para manter uma conversa desequilibrada.
–Há dinero a ser feito lá.
Ele falou comigo de qualquer maneira, como em uma canção, e quase me afogou em seu sorriso torto enquanto mostrava, de forma repugnante, praticamente todas as gengivas e tentava enrugar os olhos incolores.
– Eu acredito – disse a ele – o último búfalo da Riviera foi morto antes do fim da guerra, junto com um dos últimos garimpeiros remanescentes.
O homem riu educadamente, e minha irmã, rindo daquele jeito dela, quando irritada por minhas observações tolas, chacoalhou meu chá diante de mim.
Adicionei açúcar e leite ao líquido morno, praticamente anêmico, e perguntei:
—Mas que diabos aconteceu com você? – não para ela, mas para mim mesmo.
Kaitlin me presenteou com seu encolher de ombros e olhou para Stanley daquele jeito idiota das histórias de verão.
Sangue de Cristo! Essa predestinação está encarnada, que futuro se aproxima grosseiramente diante de mim? Só porque dei uma espiada em um canto minúsculo do universo, o destino vai transformar uma viagem descontraída de Lisboa para a Riviera Francesa, através do sopé dos Pirenéus, em uma trilha interminável de mortos, animais, despidos de suas peles preciosas? Junto com a fervura de pétalas de lótus em pequenas garrafas azuis fedorentas como chinelos de uma velha, justamente STANLEY, o comerciante de peles fedorento e pegajoso? E ainda por cima, ao longo do caminho seremos entretidos pelo barulho de um violão desajustado?
Não, Kaitlin, isso nunca funcionaria. Em seguida, só o que faltava, era minha pequena Rachel anunciar que decidiu permanecer a bordo do Borboleta em Lisboa e navegar em volta do Cabo da Boa Esperança, servindo como marinheira! Afinal, ela tem quase a idade de sua mãe quando fugimos para o mar.
Bem, a única coisa sensata a fazer era encontrar Hero e garantir a mim mesmo que ele não estava tramando um plano desonesto para se tornar o animal de estimação do nosso Sr. Choy e transferir sua lealdade para ele. Ninguém notou minha saída da cozinha,
encontrei Hero deitado de costas sob uma fresta de sol ao lado da porta da casa do leme, através do vidro, Sr. Choy sorria amplamente para mim e curvou-se profundamente enquanto segurava o timão. As duas pernas esquerdas de Hero estavam no ar, movendo-se em uníssono, embora espasmodicamente, deveria estar a perseguir coelhos ou algo do tipo, em seus sonhos. Eu sabia que não deveria acordá-lo. Rachel poderia agarrá-lo e sacudi-lo à vontade que ele não faria nada além de uivar um pouco e depois lamber sua mão com amor, mas se eu tocasse com apenas um dedo do pé que fosse, corria sérios riscos de perder um braço, no mínimo até o cotovelo.
O Sr. Choy ainda estava curvado na minha direção, então eu assenti para aliviá-lo de sua cortesia e deixei os dois entre suas várias fantasias, partindo para dormir abandonado na cabine vazia.
Quando acordei no início da tarde, a cabine estava ainda preenchida apenas pelo meu mal-estar sombrio, então fui procurar um pouco de café e alguma companhia.
Ao abrir a porta da cabine principal, a cena mais incrível surgiu diante de mim, como se algum fotógrafo de notícias errante tivesse pulado na sala à minha frente e disparado um flash. Kaitlin estatelada com olhos sonhadores, Cian sorrindo e acariciando um cão preto, o tabuleiro de xadrez meio vazio, Rachel segurando seu cachorro estúpido e Stanley Dortworthy com um corte de cabelo entopetado, que o fez virar um garotinho, explicando as complexidades do garfo de cavalo para minha Cian!
—Por que não está tocando violão com a mão livre para seu amigo Doki?
Era o que eu queria dizer a Cian, mas depois de resmungar uma saudação qualquer pelo caminho, tudo o que consegui foi um bocejo de Hero, um meio aceno de Rachel e um olhar apressado de Cian enquanto ela voltava sua atenção para o tabuleiro