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Celebrei a eucaristia sem a presença do miúdo e, apesar da mão caridosa que segurou o incenso não se ter ausentado, o resultado da experiência não foi semelhante à que sinto na presença dele. Não o ver durante um par de horas foi um tormento ainda maior do que tê-lo deitado a centímetros da minha pele.
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O veredicto do doutor foi definitivo. “É uma forte gripe que está a afetar as defesas do rapaz”, diz-me numa voz grossa, esboçando um sorriso rigoroso, “mas que com alguns dias de repouso e uma forte dose de analgésicos, estará novamente com saúde”. Caminhámos os dois até à porta, cujas dobradiças emitem um ruído carregado de ferrugem que nos faz estremecer devido à sua agressão auditiva. Após isso, o doutor volta-se com solenidade, baixa o olhar, submisso, e pede a bênção. Esboço uma cruz no ar, bem ao nível do seu rosto e logo se despede com uma vénia. O rapaz volta a adormecer, inspirando e expirando com dificuldade. Apalpo a sua testa para explorar a doença, mas só consigo sentir o meu corpo a tremer e uma transpiração excessiva a fluir das minhas mãos.
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Fiz serviço de escritório e encurtei as reuniões com os paroquianos. E já livre das minhas responsabilidades, caminhei pelo passeio do cais, na margem do rio, que liga esta pequena cidade à cidade vizinha, atingida pela brisa que se agita com um profundo assobio e como sempre, que me despenteia. O fim do verão arrasta belos murmúrios. As andorinhas propiciam o conhecido êxodo anual até ao oeste numa peregrinação com demasiada lamentação, uma vez que as aves, na sua anarquia escatológica, durante esta época recorrem justamente à zona do parque central, ornamentando automóveis, bancadas, praças e peões com uma festa de excrementos sem igual.
Precisamente agora em que caminho perto do parque central, percebe-se a trinada coral destes pássaros minúsculos agarrados aos cabos elétricos, num canto coletivo retardado por breves intervalos devido ao ruído dos transportes que circulam sem cessar pela avenida. Continuo a minha marcha pela rua mais discreta que encontro nesta vila aspirante a cidade, um beco sem passagem para veículos que se converteu no meu itinerário obrigatório de toda a vez que venho às compras. Aqui tudo é serenidade, sem estrondos de motores e buzinas irritantes. E de repente, ressoa o barulho do lugar do bilhar, inaugurado nestes últimos dias. Ouvem-se insultos revestidos de uma tonalidade cada vez mais obscena que fluem da boca de um jovem que não hesita perante a robustez do seu inimigo, o qual se encontra orgulhoso das suas tatuagens obscenas que incitam a classificá-lo como um preso de alguma prisão remota. Opto por retirar-me rapidamente e, girando sobre os meus calcanhares, de costas voltadas para as hostilidades, consigo ouvir os golpes secos que agitam os corpos. Vou para a avenida principal. Caminho, tentando esquecer o miúdo. Mas nem sequer o barulho dos carros, nem os gritos dos condutores furiosos com a ponta do pé no pedal, ou a chuva de críticas que recai sobre mim como se fosse loiça, ou até mesmo o recente conflito na rua, são capazes de me fazer deixar de pensar nele e deter o meu suplício. Tento distrair-me ao pensar em uma conclusão pacífica para aquela rivalidade no beco. Chego ao meu destino, mas sem ter tirado dos ombros o peso que carrego.
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O mercado é um incêndio de sons. Os gritos que tomam conta do lugar, carregado de vendedores ansiosos por vender as suas frutas, legumes, grãos e outros alimentos no geral, dão um toque de euforia, próprio dos lugares cheios de pessoas. Como sempre, aproximo-me da zona do peixe e peço o mesmo de todas as segundas-feiras.
“Aqui tem, Padre”, diz-me Leandro, o vendedor que me conhece há anos e embrulha, sem contemplar, os peixes, ainda epiléticos, em folhas de jornais antigos. Ao sair do mercado oiço as sirenes da polícia a queixarem-se num alarido, encorajando e perseguindo os curiosos que se juntam na cena do crime para recriarem a sua curiosidade e julgarem com os olhos. Ao passar perto da rua da batalha, posso ver como o rufia corpulento é algemado e colocado no carro-patrulha, mas não sem oferecer resistência. Não há sinais do jovem destemido. Afasto-me, imaginando uma vez mais uma conclusão rebuscada à história da briga no bar. Recai sobre mim a imagem do menino, a lembrança da sua voz que palpita nos meus tímpanos como se fosse um coro de anjos. Entendo que é uma blasfémia maior do que os palavrões do homem musculado e cheio de tatuagens. Faço algumas orações enquanto vou para casa.
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A senhora Salomé desfila, balançando a vassoura à minha frente sem qualquer preocupação, sob a proteção de Tomás, como sempre. Adaptou-se à minha presença no sofá, à minha prostração habitual que me une a uma mistura de sensações que ela jamais suspeitaria. Por alguns momentos entendo que sou eu quem está acostumado à sombra da sua anatomia a deslocar-se pela sala. Levanto-me entediado e dirijo-me aos meus aposentos.
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A música penetra em minha sensibilidade e imprime uma pegada com a sua alquimia melodiosa. Fecho os olhos e sou transportado para outro mundo, mais prazeroso, um lugar marcado por alegrias intermináveis, um paraíso feito de todas as flores: túlipas, dálias, ageratos, crisântemos, orquídeas, lírios – onde perder-se torna-se uma bênção. A única forma de evitar os pensamentos inalcançáveis e constantes.
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Uma ânsia agita o corpo do jovem. A força, que comprime e que o diafragma libera violentamente, emana dos pulmões e irrompe com dureza, deslizando grosseiramente pela língua, atravessando as cordas vocais que transformam o impulso num som rouco e turvo. A tosse materializa-se na saliva que atravessa a garganta e termina numa viagem desde a janela até ao jardim. O menino tosse prolongadamente, com pausas que mal lhe dão descanso ao ardor das amígdalas. Ao mesmo tempo, o impetuoso latido de Tomás inunda toda a casa, apesar de estar no pátio, e é possível notar que a sua vigia não foi inútil, já que deve ter detetado provavelmente algum bicho escorregadio, ou talvez se trate apenas de uma invenção dos seus sentidos envelhecidos.
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O toque recorrente move o silêncio enquanto oiço os sapatos da senhora Salomé atrás de mim, a deslizar apressados sobre os azulejos, detendo-se no seu destino para dar lugar ao som plástico do levantar do auricular. O tilintar dos utensílios do serviço de mesa eleva-se aos ouvidos de Tomás, órgãos cansados, mas mais despertos do que o seu olfato quase perdido. Talvez esteja a exagerar e ele tenha alcançado a mesa devido ao cheiro do peixe. O menino descansa. Mastigo com cuidado a textura do alimento. A suavidade salina que me satisfaz o paladar e oiço a aniquilação de alguma espinha entre os dentes. A senhora Salomé retira os pratos. E comunica-me, muito formalmente, que hoje precisa de sair mais cedo devido a um incidente doméstico, pelo qual se deverá ausentar por alguns dias. Assinto com a cabeça num gesto confirmatório.
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Abro o tríptico após examinar o mundo em colapso. A minha visão recai sobre o lado direito, impregnado de ilustrações complexas. Será o inferno um lugar assim tão barulhento? Questiono-me. Será um grito infinito que faz explodir o cérebro e as entranhas para depois nos incentivar a recolher os nossos restos? Ou será que todos esses instrumentos musicais tingidos na pintura carecem de sons e o silêncio infernal é o destino dos hereges? O inferno não é o doce uivo do silêncio, disso tenho a certeza, é o fluxo de crepitações que se fundem para dominar a alma. Por isso este condenado está embutido nas cordas da arpa, e este outro infeliz está sacrificado no gigante alaúde. Então penso na minha condenação e escrutino a este triste sodomita perfurado por uma flauta como o iniciador de uma grande estirpe de sofredores e é como se conseguisse escutar o seu sofrimento, como se de alguma forma enigmática a sua dor fictícia se transfigurasse em cumplicidade dentro do meu intestino e me fizesse lembrar do horrendo pecado. Contemplo o homem que é abraçado por um porco com véu de freira, e é como se me