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O menino passa em frente à minha porta e detém-se por um momento, inclinando-se e ajeitando algo em suas pantufas. O seu pijama branco faz a sua pele transparecer e é possível ver a sua figura de miúdo voluptuoso. Porém, no seu rosto há inocência, castidade. A luz artificial faz as suas bochechas ganharem um tom rosa pálido que brilha sobre o tom claro-escuro da entrada. Desconhece por completo os seus poderes de sedução, da perigosa atração que produz a cada passo que dá. Endireita-se, lança um olhar para o interior do meu quarto e, na sua timidez eterna, tenta despedir-se de mim com uma vénia que parece distante e irritante. Com um gesto, convido-o a aproximar-se. Dou-lhe a minha bênção e faço um sinal da Cruz imaginário sobre a sua testa. Depois, descendo a minha mão, quase que em forma de punho, à altura da sua boca, vejo como os seus lábios acariciam os meus dedos, contemplando o seu rosto perto de mim e sinto um tremor invadir-me, pois o aspeto de suas feições assemelha-se ao rosto de um arcanjo. Passo para os seus ombros e nesta ocasião, continuo com o sinal da Cruz com quatro beijos que lhe dou na testa. Não tenho outra opção senão deixá-lo ir e continuar a minha oração.
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O jovem Manuel depositou a sua confiança nas palavras do Padre Misael. E este convida-o a rezar o terço todas as noites com ele. Instruiu-o na arte mística da oração, na interiorização espiritual que, segundo o sacerdote, purificará a sua alma, ficando livre de todo o pecado para poder ser um filho de Deus purificado. E Manuel manifesta a sua entrega incondicional. O Pastor impôs-lhe esse dogma. Mostrou-lhe que a fé é o que realmente importa se queremos ser salvos pelo Senhor, e que devemos confiar nas suas intenções, mesmo nas mais misteriosas. E o menino acredita nele. Às vezes, ao ajoelhar-se diante da cama, o Padre põe-se de costas e aperta as mãos do menino. “É uma oração reforçada”, sussurra-lhe ao ouvido. “Assim Deus poderá ouvir-nos melhor, a ti como filho e a mim como Padre”, murmura-lhe todas as vezes, de forma quase inaudível, manifestando o segredo que não quer que a pequena imagem esculpida do Homem na cruz oiça, a qual está pendurada sobre a cabeceira da cama. É nas noites mais frias que Manuel mais desfruta da sua companhia naquela oração dupla, mas que nos dias de calor parece-lhe insuportável, pois não consegue aguentar ficar com o corpo firme e pegajoso, colado às nádegas, com a respiração ansiosa e quente que o Padre expira nas orações e nas palavras de despedida, quando lhe dá o beijo empapado na nuca. Mas agora, ajoelhado, repousando os cotovelos sobre o colchão, o menino está a rezar perante a imagem do Profeta e o seu pai ainda não chegou.
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Esta noite não me levantarei. Deus reforçou a minha fé. Deus é o meu pastor, o meu guia, a minha luz e o meu caminho. Escuta a minha oração e permite que eu tenha força para que não caia na escuridão do pecado, oh Deus amado, oh Pai amado.
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“Pelo amor de Deus, que sonho tão horrível. Salva-me, Senhor. Vigia-me e protege-me, Pai. Cuida de mim, Senhor. Que sonho tão horrível. Ajuda-me, Senhor, imploro-te. Não voltarei a cair nos prazeres do pecado. Prometo. Porque não suporto esta escuridão. Os meus olhos não suportam tanta escuridão”. Caminho, testando o meu leito, menos quente agora sem o meu corpo lá. Apalpo o vestuário, duro como a escuridão que me sufoca. “Não encontro a saída que me leve até à luz, Senhor, guia-me até à saída. Não permitas que os meus pés voltem a tropeçar”. Apalpo uma parede, fria como as minhas mãos, congeladas ao fundirem-se na frieza. “Senhor, encaminha-me”. Continuo a gritar em vão. Esta casa é tão triste, solitária e tão grande que o Padre Misael não me consegue ouvir. “No entanto, Senhor, Pai amado, que ouves as lamentações de todos os vossos filhos, guia as minhas pernas, acolhe-as na tua luz, tira-me desta escuridão e prometo ser-te fiel até ao último dos meus dias. Prometo agradecer-te pela minha fé todas as manhãs. E cumprir as penitências do teu mandato divino. Senhor, Pai amado, eu confio em ti. A tua palavra será como uma lanterna para o meu pé e uma luz para o meu caminho. Eu sei que sim, Senhor, confio plenamente em ti. Mostra-me a saída. Guia-me até à Tua luz”.
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A porta do quarto abre-se e o menino, descalço, chama pelo Padre. Teve que atravessar o largo Purgatório do corredor que separa os quartos como se fosse a interminável separação entre o Inferno e o Paraíso.
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E chega ao pé de mim com as bochechas a tremer e os dentes a ranger, gelado, pálido.
“Tive um sonho horrível, Padre. Sonhei que havia um fantoche entre os dentes de uma besta gigante. Era um monstro horrível. Tinha uns olhos enormes e vermelhos e olhava para mim enquanto me segurava na sua boca, pois o fantoche era eu. E a forma como me olhava? Bufava como um touro e tinha uma baba muito líquida que quando caía era pegajosa, nojenta. Estava tudo escuro. Mas os seus olhos, oh Deus, como eram horríveis os seus olhos”.
“Entra, filho amado”, eu disse. E recebo-o em minha cama e por dentro estou a sorrir do seu medo infantil do escuro.
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Entra, jovem. Entra, triunfante à tua Jerusalém, que te aclama.
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Uma vez mais o Padre Misael não consegue dormir, enquanto isso, vai até à janela, com o menino a dormir no seu leito. Tudo o que ele deseja é um copo de vinho, mas não do cálice sagrado que se transforma no sangue do Senhor, e sim daquele que lhe acalma os nervos e permite-lhe reprimir o desejo de ser outro. Lá em baixo, toda a cidade dorme. E à distância, observa como nenhuma janela tem luz e percebe que a sua insónia é infinita, incomparável. Uma solidão sem fim e sem intervalos. Reconhece que não há outra igual. O mundo não iria compreender. Nem compreenderá. Nem sequer Deus, na sua infinita sabedoria e com o seu olhar omnipresente, compreenderia. Nem compreenderá.
SEGUNDA-FEIRA
Oração e blasfémia
…sanctificetur nomen tuum.
O peito incha e um terramoto em miniatura, proveniente dos brônquios, incha a cavidade torácica, germina nos anéis da traqueia, ronronando uma resposta inconsciente e coletiva, invocada por milhões de bacilos ávidos de substâncias, convulsionando, por onde passa, a faringe e a laringe. A onda microscópica flui e espalha a sua auréola com a trepidação de toda a epiglote. O ciclone minúsculo ecoa na membrana pituitária e distribui o aluvião entre o nariz e o paladar, facilitando o congestionamento do súbito estrondo do roncar.
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Passei a noite em branco, implorando ao céu, misericórdia, ouvindo o sussurro das minhas jaculatórias misturarem-se com o barulho da respiração do menino. O som do seu peito inflamado foi outro incentivo para a minha vigília. Ligarei para o médico assim que amanhecer. De toda a vez que senti vontade de contemplar a sua anatomia repousando sobre o meu leito, sujeitei-me à acusação feita pelo meu desejo de continuar a ser um filho de Deus. De seguir os passos do Profeta e não ceder logo às armadilhas do mal. “Quero servir-te Senhor e derrotar a tentação do demónio e dizer-lhe que nem só de carne vive o homem. Ele atenta-me, para que me afaste de Ti, oh Pai amado, mas eu sou servo exclusivo das Tuas ordens”.
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Tomás vê sombras onde elas não existem. Inventa-as. Por vezes, durante as manhãs ensolaradas do verão, põe-se a andar atrás das lagartixas, animais que se infiltram nas paredes de pedra do jardim, por entre as fendas de cimento do pátio das traseiras, entre as gretas da beira das janelas, aquela bicharada que aparece para apanhar um pouco de sol. Tomás repreende-as com uma voz anciã, com grunhidos grossos, carregados de lentidão e escassos em impulsos. Embora, noutras alturas, recorra ao ladro com uma energia inusual, fazendo predominar a sua autoridade de cão mais velho,