Tal debate culmina em discussões muito importantes acerca do instituto da autorização, eis que versam diretamente sobre a posição jurídica do particular postulante a uma autorização, bem como acerca do caráter do ato administrativo autorizativo. Isso ocorre, pois sendo o ato constitutivo, não haveria direito subjetivo à sua obtenção e, portanto, seria sua outorga discricionária por parte da Administração. Em sentido contrário, sendo o ato meramente declaratório, haveria direito subjetivo à sua obtenção, haja vista existir posição subjetiva apta a receber a autorização administrativa pré-existente à edição do ato, portanto, seria a outorga ato vinculado, dado que não remanesceria capacidade de a Administração Pública exercer um juízo subjetivo sobre a outorga. Trata-se de situação binária em que o particular, ou preenche os requisitos e, portanto, tem direito subjetivo à autorização, ou não os preenche e, portanto, não tem tal direito subjetivo.
No Direito Administrativo brasileiro, a autorização está presente desde há muito. Cumpre o mesmo papel que no Direito Administrativo da Europa continental, qual seja, permitir que particulares exerçam atividades que sem a autorização não seriam lícitas. Desde sempre também é incluído no rol dos atos administrativos emanados no campo do poder de polícia.
Não obstante, entre nós, a autorização acabou recebendo contornos um pouco distintos daqueles tratados na doutrina europeia. Exceto pela visão de Miguel Reale, que é muito próxima daquela adotada pela doutrina italiana17, a doutrina brasileira sempre tratou a autorização como um ato essencialmente discricionário e precário, impassível, portanto, de criação de direitos subjetivos para o particular autorizatário.
Nos primórdios, a doutrina tratava da autorização como um dos atos de polícia. Este ato constituía-se como “o ato administrativo discricionário pelo qual se permitir ao particular exercer atividade que, sem o assentimento da administração, seria proibida”18. Seguem posição semelhante Themístocles Brandão Cavalcanti19, Francisco Campos20 e outros.
Não obstante, a posição mais importante, que se tornou referência na teoria e na prática do Direito Administrativo, foi aquela manifestada por Hely Lopes Meirelles. O autor, em uma cuidadosa classificação dos atos administrativos, definia autorização como:
ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração (...)21.
Em outra manifestação, completa o autor:
na autorização, há apenas, uma aquiescência unilateral, precária e discricionária, que possibilita a atividade ou a execução do serviço, sem qualquer encargo para o autorizante e sem nenhuma garantia para o autorizatário”22.
Dada a relevância da definição apresentada pelo autor, ainda hoje presente em decisões e atos normativos da Administração Pública, importante analisar todas as suas implicações, como passarei a desenvolver.
Em primeiro lugar, é relevante notar que o autor classifica a autorização como ato necessariamente discricionário e precário, ou seja, ato que pode ou não ser outorgado, conforme juízo de conveniência a oportunidade pela Administração Pública e que, igualmente, pode ser revogado a qualquer tempo. Essa classificação tem implicações muito relevantes e significativas para a posição jurídica subjetiva do particular, eis que: (i) implica a inexistência de direito subjetivo à obtenção do ato autorizatório; (ii) atribui à Administração Pública a capacidade de avaliar, segundo as condições do caso concreto, a conveniência e a oportunidade de se outorgar uma autorização a um particular que a pleiteia; e (iii) não cria proteções à esfera jurídica do particular autorizado, eis que o ato de autorização, por sua precariedade, poderia ser revogado a qualquer tempo, sem que qualquer direito fosse garantido ao autorizatário.
Em segundo lugar, a classificação apresentada pelo célebre administrativa brasileiro extrapola a delimitação clássica do poder de polícia, como ocorria nas manifestações doutrinárias majoritárias que lhe antecedem. A razão para tanto decorre do fato de que Hely Lopes Meirelles menciona a pertinência da autorização para garantir o acesso a atividade (formulação clássica do poder de polícia) ou serviço, algo que já entraria no campo dos serviços públicos. Ou seja, o autor em discussão admite que possa haver autorização de serviços privativos da Administração Pública, extrapolando o binário tradicional de concessão/permissão.
Em terceiro lugar, o autor em análise ainda afirma que a autorização é outorgada no interesse exclusivo ou predominante do autorizado. Com isso, quer-se afirmar que as atividades autorizadas não poderiam se voltar para a satisfação de um interesse da coletividade, mas apenas um interesse do autorizado. Tal afirmação possui grande relevo para determinar o cabimento da autorização, da concessão e da permissão segundo o pensamento de Hely Lopes Meirelles – o qual, diga-se, teve enorme influência sobre os doutrinadores posteriores e sobre a prática administrativa23.
O autor ainda expressamente manifesta-se no sentido de que as atividades exploradas em regime de autorização, quando qualificadas como serviço público, teriam como traço a sequer inexistência de um regulamento de serviço, algo que seria ínsito e típico das permissões e autorizações. Nesse passo, para o autor, o elemento diferencial da autorização no campo dos serviços públicos é sua exploração segundo ordens exclusivas do ente autorizante, sem a estabilidade típica dos regulamentos, o que não assegura ao autorizatário qualquer forma de indenização ou pleito perante o autorizante24.
Em consonância com a classificação apresentada pelo autor, a concessão é cabível para contemplar a delegação não discricionária e não precária (i.e., contratual e aprazada) de um serviço público para um particular, que o presta em nome e lugar do Estado. De outro turno, a permissão seria cabível para contemplar a delegação unilateral, precária e discricionária de um serviço público a um particular, para prestação à coletividade, também em nome e lugar do Estado, o que se caracteriza pela incidência de regulamentos de serviço. Por fim, como já mencionado, a autorização prestar-se-ia para permitir a prestação de um serviço público, de forma unilateral, precária e discricionária, no interesse exclusivo ou predominante do particular, sem a existência de um regulamento de serviço25.
Ocorre, contudo, como é cediço, que a obra de Hely Lopes Meirelles foi majoritariamente escrita antes da edição da Constituição Federal de 198826, não contemplando o que determina o disposto no artigo 21, incisos XI e XII, de nossa Carta Política. Referidos dispositivos – sendo que o primeiro teve sua redação dada pela Emenda Constitucional n.° 11/98 – expressamente preveem um rol de atividades que devem ser exploradas pela União Federal, diretamente ou por meio de concessão, permissão ou autorização.
Nesse diapasão, passa a ser fundamental interpretar-se o que venham a ser esses três institutos e o que significam as competências materiais da União Federal contempladas nos dispositivos mencionados. E isso ocorre porque o texto constitucional não determinou o que venham a ser atividades lá descritas (serviços públicos ou não) e nem tampouco determinou os contornos e o cabimento dos institutos da autorização, da concessão e da permissão nos casos lá versados.
Muito embora a previsão constitucional da autorização como instrumento apto a permitir a exploração de atividades como telecomunicações, energia elétrica e transportes aéreos, terrestres e aquaviários demande, claramente, a meu ver, uma revisão da visão desse instituto do Direito Administrativo, fato é que a doutrina brasileira mais tradicional não mudou significativamente seu posicionamento após o advento da Constituição Federal de 1988.
Os exemplos mais importantes