Rea sentiu uma súbita onda de vontade. Podia ser a sua única hipótese, ela percebeu. E agora que ela estava grávida, ela percebeu que não sabia o quanto desejava aquela criança. Ela desejava-a mais do que qualquer coisa.
Rea começou a caminhar de volta para a sua aldeia, apreensiva, apanhada num remoinho de emoções misturadas, mal preparada para enfrentar a desaprovação que, ela sabia, estaria à sua espera. Os aldeões insistiriam para que nenhum filho dos saqueadores da sua cidade, dos homens que lhes haviam tirado tudo, sobrevivesse. Rea dificilmente poderia culpá-los; engravidar as mulheres era uma tática comum dos saqueadores para dominar e controlar as aldeias em todo o reino. Às vezes eles eram mesmo enviados para isso. E ter um filho só alimentava o seu ciclo de violência.
Ainda assim, nada disso poderia mudar a forma como ela se sentia. Uma vida vivia dentro dela. Podia senti-la a cada passo que dava. Ela sentia-se mais forte por aquela vida. Ela podia senti-la a cada batimento cardíaco, pulsando através do seu próprio.
Rea caminhou pelas ruas do centro da aldeia, de volta para a sua cabana de uma assoalhada, sentindo o seu mundo virado do avesso, querendo saber o que pensar. Grávida. Ela não sabia como estar grávida. Ela não sabia como dar à luz uma criança. Ou como criar uma. Ela mal conseguia alimentar-se a ela própria. Como é que ela poderia sustentá-la?
No entanto, de alguma forma, ela sentiu uma nova força a erguer-se dentro dela. Ela sentia-a a pulsar nas suas veias, uma força que ela só tomara vagamente consciência nestas últimas três luas, mas que agora tinha ficado perfeitamente nítida. Era uma força para além dela. A força do futuro, da esperança. Da possibilidade. De uma vida que ela nunca conseguiria escolher o destino.
Era uma força que exigia que ela fosse maior do que jamais conseguiria ser.
Ao caminhar lentamente pelas ruas de terra, ela começou a ficar vagamente consciente do que a rodeava e dos olhos dos aldeões a olhar para ela. Ela virou-se e, em ambos os lados da rua, viu os olhos curiosos e de desaprovação de mulheres novas e velhas, de homens velhos e rapazes, de sobreviventes solitários, de homens mutilados que traziam as cicatrizes daquela noite. Todos transportavam nos seus rostos grande sofrimento. E todos eles olhavam para ela, para a sua barriga, como se ela fosse de alguma forma culpada.
Entre eles, ela via mulheres da sua idade, de caras assombradas, olhando para ela sem compaixão. Muitas delas, Rea sabia, tinham também sido engravidadas e já tinham tomado a raiz. Ela conseguia ver a tristeza no seu olhar e conseguia sentir que elas queriam que ela a compartilhasse.
Rea sentiu a multidão a engrossar à sua volta e quando olhou para cima ficou surpreendida ao ver uma parede de pessoas a bloquearem-lhe o caminho. A vila inteira parecia ter saído à rua, homens e mulheres, jovens e velhos. Ela via a agonia nos seus rostos, uma agonia que ela tinha partilhado. Ela parou e olhou para eles. Ela sabia o que eles queriam. Eles queriam matar o seu filho.
Ela sentiu uma repentina onda de desafio – e resolveu naquele momento que nunca o faria.
"Rea", ouviu-se uma voz grossa.
Severn, um homem de meia-idade com cabelo escuro e barba, uma cicatriz na bochecha feita naquela noite, estava ao centro e olhou para ela, cima abaixo, como se ela fosse um pedaço de gado. Passou-lhe pela cabeça dela que ele não era muito melhor do que os nobres. Eles eram todos iguais: todos achavam que tinham o direito de controlar o seu corpo.
"Tu vais tomar a raiz", ele ordenou sombriamente. "Vais tomar a raiz e amanhã tudo isto vai ficar no teu passado."
Ao lado de Severn, uma mulher deu um passo adiante. Luca. Ela também tinha sido atacado naquela noite e tinha tomado a raiz na semana anterior. Rea tinha-a ouvido a gemer durante toda a noite, gritando de dor pelo seu filho perdido.
Luca deu-lhe um saco, com o pó amarelo a ver-se lá dentro. Rea recuou. Ela sentiu a aldeia inteira a olhar para ela, esperando que o aceitasse e levasse.
"Luca irá acompanhar-te ao rio. Ela vai ficar contigo durante a noite.", acrescentou Severn.
Rea olhava para ele, sentindo uma energia estranha a crescer dentro dela ao olhar para todos eles friamente.
Ela não disse nada.
Os rostos deles endureceram-se.
"Não nos desafies, miúda", disse outro homem, aproximando-se, segurando a sua foice com força até os seus dedos ficaram brancos. "Não desonres a memória dos homens e mulheres que perdemos naquela noite, dando vida aos seus filhos. Faz o que esperam de ti. Faz o que tens a fazer."
Rea respirou fundo e ficou surpreendida com a força da sua própria voz ao responder:
"Eu não o farei."
A sua voz soava-lhe estranha, mais profunda e madura do que nunca. Era como se ela se tivesse tornado numa mulher do dia para a noite.
Rea observou os rostos deles a enraivecerem-se, como uma nuvem de tempestade a passar num dia ensolarado. Um homem, Kavo, franziu a testa e deu um passo adiante, com um ar autoritário. Ela olhou para baixo e viu o chicote na sua mão.
"Há uma maneira fácil de fazer isto", disse ele, com uma voz dura como o aço. "E uma maneira difícil."
Rea sentiu o seu coração a bater com mais força e olhou para ele bem nos olhos. Ela lembrou-se do que o pai lhe havia dito uma vez, quando ela era uma menina: nunca recues. Perante ninguém. Luta pelo que queres, mesmo que as hipóteses estejam contra ti. Especialmente se as hipóteses estiverem contra ti. Olha sempre para o valentão maior. Ataca primeiro. Mesmo que isso signifique a tua vida.
Rea explodiu em ação. Sem pensar, ela estendeu a mão, agarrou num bastão da mão de um dos homens, aproximou-se e, com toda sua força, golpeou Kavo no seu plexo solar.
Kavo arfou ao cair de joelhos e Rea, não lhe dando outra hipótese, golpeou-o na cara. O seu nariz partiu-se e ele largou o chicote e caiu no chão, segurando o nariz e gemendo na lama.
Rea, ainda segurando firmemente o bastão, olhou para cima e viu o grupo de rostos horrorizados e em choque a olhar para ela. Todos eles pareciam um pouco menos certos.
"É o meu filho", ela cuspiu. "Eu vou tê-lo. Se vierem atrás de mim, da próxima vez não vai ser um bastão na vossa barriga, mas uma espada."
Com aquilo, ela segurou com mais força o bastão, virou-se e, lentamente, afastou-se, acotovelando a multidão para passar. Nenhum deles, ela sabia, se atreveria a segui-la. Não agora, pelo menos.
Ela afastou-se, com as mãos a tremer, com o coração a bater com força, sabendo que seriam uns longos seis meses até que o seu bebé nascesse.
E sabendo que da próxima vez que eles viessem atrás dela, viriam para matá-la.
CAPÍTULO TRÊS
Seis Luas Mais tarde
Rea estava encostada ao monte de peles junto da sua crepitante pequena fogueira, total e completamente sozinha, a gemer e a gritar em agonia quando as suas dores de parto chegavam. Lá fora, o vento do inverno uivava e os ferozes vendavais faziam com que as persianas batessem contra as paredes da casa e a neve se desintegrasse em fluxos por cima da cabana. A tempestade combinava com a sua disposição.
O rosto de Rea brilhava com suor. Ela estava ao lado da pequena fogueira, mas não conseguia aquecer, apesar das chamas furiosas, apesar de o bebé chutar e girar na sua barriga como se estivesse a tentar sair. Ela estava molhada e com frio, tremendo toda, tendo a certeza de que iria morrer naquela noite. Outra dor de parto. Ao sentir-se naquele estado, ela desejava apenas que o saqueador a tivesse matado naquele momento; teria sido mais misericordioso. Aquela longa e lenta tortura, aquela noite de pura agonia, era mil vezes pior do que qualquer coisa que ele jamais lhe pudesse ter feito.
De repente, ainda mais alto do que os seus gritos, por cima dos vendavais ouviu-se outro som – talvez o único som que ainda era capaz de lhe provocar uma sacudidela de medo pela sua