— Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assunção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se. Amélia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. João Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
— Muitos parabéns por ter quinado com o senhor pároco. Que entusiasmo! — E como ela ia responder: — Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu xale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviário; mas distraia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o perfil de Amélia. Sentado à beira da cama, com o Breviário aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu buçozinho gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do cônego e da monotonia do quino, com uma grande sede além disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas não tinha água no quarto. Lembrou-se então que na sala de jantar havia uma bilha de Extremoz com água fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro corrido; ergueu-o e recuou com um ah! Vira num relance Amélia, em saia branca a desfazer o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braços brancos, o seio delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imóvel, com um suor à raiz dos cabelos. Poderiam suspeitar uma ofensa! Palavras indignadas iam sair decerto através do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!
Mas a voz de Amélia, serena, perguntou de dentro:
— Que queria, senhor pároco?
— Vinha buscar água, balbuciou ele.
— Aquela Ruça! aquela desleixada! Desculpe, senhor pároco, desculpe. Olhe aí ao pé da mesa, a bilha. Achou?
— Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a água escorria-lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amélia sentiu por baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto.
V
Ela, em cima, não dormia também. Sobre a cômoda, dentro de uma bacia, a lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de morrão de azeite; brancuras de saias caídas no chão destacavam; e os olhos do gato, que não sossegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade fosfórica e verde. Na casa vizinha, uma criança chorava sem cessar. Amélia sentia a mãe embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Era a pobre Catarina engomadeira, que o tenente Sousa deixara com um filho no berço, e grávida de outro — para ir casar a Extremoz! Tão bonita era, tão loura — e mirrada agora, tão chupada!
Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãe foi à fonte!
Como ela conhecia aquela cantiga! Quando tinha sete anos sua mãe dizia-a, nas longas noites de Inverno, ao irmãozinho que morrera!
Lembrava-se bem! moravam então noutra casa, ao pé da estrada de Lisboa; à janela do seu quarto havia um limoeiro e a mãe punha, na sua ramagem luzidia, os cueiros do Joãozinho, a secarem ao sol. Não conhecera o papá. Fora militar, morrera novo; e a mãe ainda suspirava ao falar da sua bela figura com o uniforme de cavalaria. Aos oito anos ela foi para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma velhita roliça e branca, que fora tacho das freiras de Santa Joana de Aveiro; com os seus óculos redondos, junto à janela, empurrando a agulha, morria-se por contar histórias do convento: as perrices da escrivã, sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com uma pronúncia minhota; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Távoras; e a legenda de uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando: — Augusto! Augusto!
Amélia ouvia aquelas histórias, encantada. Gostava então tanto de festas de igreja e da convivência dos santos, que desejava ser uma "freirinha, muito bonita, com um veuzinho muito branco". A mamã era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amélia chamava-lhe padrinho. Quando ela voltava da mestra, à tarde, encontrava-o sempre a palestrar com a mãe, na sala, de batina desabotoada, deixando ver o longo colete de veludo preto com raminhos bordados a amarelo. O senhor chantre perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a tabuada.
À noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o cônego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de pássaro, com óculos azuis, que fora frade franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas da mãe, com as suas meias; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia sempre a sua viola. Mas às nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ela via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silêncio, e o capitão, repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.
Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipáticos: sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão suado, com umas mãos papudas e moles, de unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e ela sentia o seu hálito impregnado de cebola e de cigarro. O seu amiguinho era o cônego Cruz, magro, com o cabelo todo branco, a volta sempre asseada, as fivelas luzidias; entrava devagarinho, cumprimentando com a mão sobre o peito, e uma voz suave cheia de ss. Já então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer "bagatela", falavam-lhe sempre dos castigos do Céu; de tal sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que só sabe dar o sofrimento e a morte, e que é necessário abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, animando os padres. Por isso, se às vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitência no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezões ou a fizesse cair na escada.
Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de música. A mãe tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um pano verde, tão desafinado, que servia de aparador. Amélia costumava cantarolar pela casa; e a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas da mãe diziam-lhe:
— Tu tens aí um piano, por que não mandas ensinar a rapariga? Sempre é uma prenda! olha que lhe pode servir de muito!
O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé de Évora, extremamente infeliz: a filha única, muito linda, fugira-lhe com um alferes para Lisboa; e, passados dois anos, o Silvestre da Praça, que ia muito à capital, vira-a descer a Rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade num olho, com um marinheiro inglês. O velho caíra em grande melancolia e grande miséria; e por piedade tinham-lhe dado um emprego no cartório da câmara eclesiástica. Era uma figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro, deixava crescer até os ombros os seus cabelos brancos e finos; os olhos, cansados, lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e parecia muito transido, no seu capote cor de vinho que só lhe chegava à cintura e que tinha uma gola de astracã. Chamavam-lhe o Tio Cegonha, pela sua alta magreza e o seu ar solitário. Amélia um dia tinha-lhe chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.
O velho pôs-se a sorrir:
— Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem cegonha!
Era então no Inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a áspera estação oprimia os pobres. Viam-se naquele ano