— E como vai a nossa Madre Abadessa?
Todos riram: e a Sra. D. Joaquina Gansoso informou o pároco que aquele rapaz, o Artur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bela voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joaneira, enchendo as chávenas de alto, dizia:
— Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do Sousa...
E Artur oferecia açúcar com o seu antigo gracejo:
— Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas; sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nódoas do chá, estendiam prudentemente os lenços sobre o regaço.
— Vai um docinho, senhor pároco? disse Amélia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.
— Obrigado.
— Aquele ali. É toucinho do Céu.
— Ah! se é do Céu.., disse ele todo risonho. E olhou para ela, tomando o bolo com a ponta dos dedos.
O Sr. Artur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de música; e Amélia, logo que a Ruça levou a bandeja, acomodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarelo.
— Então hoje que há-de ser? perguntou Artur.
Os pedidos cruzaram-se:
— O guerrilheiro! O noivado do sepulcro.' O descrido.' o nunca mais!
O cônego Dias disse do seu canto pesadamente:
— Ó Couceiro, vá lá aquela do Tio Cosme, meu brejeiro!
As mulheres reprovaram:
— Credo! por quem é, senhor cônego! Que lembrança! E a Sra. D. Joaquina Gansoso resumiu:
— Nada: uma coisa de sentimento para o senhor pároco fazer idéia.
— Isso, isso! disseram; uma coisa de sentimento, ó Artur, uma coisa de sentimento!
Artur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente à face uma expressão dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:
Adeus, meu anjo! Eu vou partir sem ti!
Era uma canção dos tempos românticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema despedida, num bosque, por uma tarde pálida de Outono; depois, o homem solitário e precito, que inspirara um amor funesto, ia errar desgrenhado à beira do mar; havia uma sepultura esquecida num vale distante, brancas virgens vinham chorar à claridade do luar!
— Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Artur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervalos, durante o acompanhamento, sorria em redor — e na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes podres. O padre Amaro, ao pé da janela, fumando, contemplava Amélia, enlevado naquela melodia sentimental e mórbida: o seu perfil fino, de encontro à luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva do seu peito; e ele seguia as suas pálpebras de grandes pestanas, que do teclado para a música se erguiam e se abaixavam com um movimento doce. João Eduardo, junto dela, voltava-lhe as folhas da música.
Mas Artur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, num gesto desolado e veemente, soltou a última estrofe:
E um dia, enfim, deste viver fatal, Repousarei na escuridão da campa!
— Bravo! bravo! exclamaram.
E o cônego Dias comentou baixo ao pároco:
— Ah! para coisas de sentimento não há outro. — E bocejando enormemente: Pois, menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
Mas chegara a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituais; e a Sra. D. Josefa Dias, com o seu olho de avara a luzir, chocalhava já vivamente o grosso saco dos números.
— Aqui tem um lugar, senhor pároco, disse Amélia.
Era junto dela. Ele hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar-se um pouco corado, ajeitando timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silêncio; e, com a voz dormente, o cônego começou a tirar os números. A Sra. D. Ana Gansoso dormitava ao seu canto, ressonando ligeiramente.
Com o abajur as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, caindo sobre o xale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões enegrecidos do uso, e as mãos secas das velhas, pousadas em atitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chama alta e direita.
O cônego rosnava os números com as pilhérias veneráveis da tradição: 1, cabeça de porco! — 3, figura de entremês!
— Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
— Temei — murmurava outra com gozo.
E a irmã do cônego, sôfrega:
— Chocalhe esses números, mano Plácido! Vá!
— E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Artur Couceiro, com a cabeça entre os punhos.
Enfim o cônego quinou. E Amélia olhando em redor pela sala:
— Então não joga, Sr. João Eduardo? disse ela. Onde está?
João Eduardo saiu da sombra da janela, por trás da cortina.
— Tome lá este cartão, ande, jogue.
— E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joaneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez réis.
— Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
Fora a irmã do cônego que não tocara no seu cobre acastelado. João Eduardo disse, curvando-se:
— Parece-me que a Sra. D. Josefa não entrou.
— Eu?! gritou ela, furiosa. Olha uma destas! Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco réis, por sinal! Que tal está o homem!
— Ah! bem, disse ele então, fui eu que me esqueci! Cá ponho. — E rosnou: beata e ladra!
E a irmã do cônego dizia no entanto baixo à Sra. D. Maria da Assunção:
— Queria ver se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
— Só quem não está feliz é o senhor pároco, observaram.
Amaro sorriu. Estava distraído, e fatigado; às vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amélia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovelo:
— Olhe que não marcou, senhor pároco.
Tinham já apostado dois ternos; ela ganhara; depois faltou a ambos para quinarem o número trinta e seis.
Em roda repararam.
— Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assunção, envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis não saía; havia outras quadras nos cartões alheios; Amélia receava que quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente interessado.
O cônego tirava os números com uma pachorra maliciosa.
— Vá! vá! Ande com isso, senhor cônego! diziam-lhe.
Amélia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
— Dava tudo para que saísse o trinta e seis!
— Sim? Aí o tem... Trinta e seis! disse o cônego.
—