Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Eca de Queiros
Издательство: Bookwire
Серия: Romancistas Essenciais
Жанр произведения: Языкознание
Год издания: 0
isbn: 9783968583242
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condessa contou que Amaro requerera para uma paróquia melhor. Falou de sua mãe, da amizade que ela tinha a Amaro...

      — Morria-se por ele. Ora um nome que ela lhe dava... Não se lembra?

      — Não sei, minha senhora.

      — Frei Maleitas!... Tem graça! Como o Sr. Amaro era amarelito, sempre metido na capela...

      Mas Teresa, dirigindo-se à condessa:

      — Sabes com quem se parece este senhor?

      A condessa afirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.

      — Não se parece com aquele pianista do ano passado? continuou Teresa. Não me lembra agora o nome...

      — Bem sei, o Jalette, disse a condessa. — Bastante. No cabelo, não.

      — Está visto, o outro não tinha coroa!

      Amaro fez-se escarlate. Teresa ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.

      — Sabe música? perguntou, voltando-se para Amaro.

      — A gente aprende no seminário, minha senhora.

      Ela correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a frase do Rigoletto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro ato, da senhora de Crécy, — e cujo ritmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.

      Amaro estava enlevado. Aquela sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o colo de Teresa que ele via sob a negra transparência da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquilos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéia duma existência superior, de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados, com árias de óperas, melancolias de bom gosto e amores dum gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a música chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer — pensando que vai voltar à dureza das côdeas secas e à poeira dos caminhos.

      No entanto Teresa, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga ária inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:

       The village seems dead and asleep When Lubin is away!...

      — Bravo! bravo! exclamou o ministro da Justiça, aparecendo à porta, batendo docemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!

      — Tenho um pedido a fazer-lhe, Sr. Correia, disse Teresa erguendo-se logo.

      O ministro veio, com uma pressa galante:

      — Que é, minha senhora? que é?

      O conde e o sujeito de magníficas suíças tinham entrado discutindo ainda.

      — A Joana e eu temos que lhe pedir, disse Teresa ao ministro.

      — Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.

      — Mas, minhas senhoras, disse o ministro, sentando-se confortavelmente, com as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometo, prometo solenemente...

      — Bem, disse Teresa, batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor paróquia vaga?

      — Ah! disse o ministro, compreendendo e olhando para Amaro, que vergou os ombros, corado.

      O homem das suíças, que estava de pé fazendo saltar circunspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:

      — Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do distrito e sede do bispado.

      — Leiria? disse Teresa. Bem sei, é onde há umas ruínas?

      — Um Castelo, minha senhora, edificado por D. Dinis.

      — Leiria é excelente!

      — Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, sede do bispado, uma cidade... O Sr. padre Amaro é um eclesiástico novo...

      — Ora, Sr. Correia! exclamou Teresa, e o senhor não é novo?

      O ministro sorriu, curvando-se.

      — Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.

      — Parece-me inútil, o pobre Correia está vencido! A prima Teresa chamou-lhe novo!

      — Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou também tão antigo...

      — Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820.

      — Era meu pai, caluniador, era meu pai!

      Todos riram.

      — Sr. Correia, disse Teresa, está entendido. O Sr. padre Amaro vai para Leiria!

      — Bem, bem, sucumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tirania!

      — Thank you, fez Teresa, estendendo-lhe a mão.

      — Mas, minha senhora, estou a estranhá-la, disse o ministro, fitando-a.

      — Estou contente hoje, disse ela. Olhou um momento para o chão, distraída, dando pequeninas pancadas no vestido de seda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a doce ária inglesa:

       The village seems dead and asleep When Lubin is away!...

      Entretanto, o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.

      — É negócio feito, disse-lhe ele. O Correia entende-se com o bispo. Daqui a uma semana está nomeado. Pode ir descansado.

      Amaro fez uma cortesia, e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:

      — Senhor ministro, eu agradeço...

      — À senhora condessa, à senhora condessa, disse o ministro sorrindo.

      — Minha senhora, eu agradeço, veio ele dizer à condessa, todo curvado.

      — Ai, agradeça a Teresa. Ela quer ganhar indulgências, parece.

      — Lembre-me nas suas orações, Sr. padre Amaro, disse ela. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano — as tristezas da aldeia quando Lubin está ausente!

      Amaro daí a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornara a esquecer aquela manhã em casa da Sra. condessa de Ribamar, — o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, prometendo o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes... Cantava-lhe sempre no cérebro aquela ária triste do Rigoleto: e perseguia-o a brancura dos braços de Teresa, sob a gaze negra! Instintivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz louro: detestava-o então, e a língua bárbara que falava, e a terra herética de onde viera: e latejavam-lhe as fontes à idéia de que um dia poderia confessar aquela mulher divina, e sentir o seu vestido de seda preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionário.

      Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para Santa Apolônia, com um galego que lhe levava o baú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candeeiros apagavam-se. Às vezes, uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe intermináveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; numa ou noutra rua uma voz aguda já apregoava os jornais; e os moços dos teatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.

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      Quando chegou a Santa Apolônia a claridade do sol alaranjava o ar por detrás dos montes da Outra Banda; o rio estendia-se, imóvel, riscado de correntes de cor de aço sem lustre; e já alguma