Sempre que voltava para casa, ela parecia feliz e satisfeita. Falava-me sobre o seu trabalho como professora, das dificuldades que por vezes tinha, ou de como alguma das crianças lhe tirava do sério.
Lembro-me até de que já tínhamos feito planos para nas próximas férias passarmos umas semanas numa dessas ilhas tropicais, cheias de cocos e praias de areia branca, onde o mar se confunde com o céu, e onde pudéssemos estar os dois juntos, a partilhar daquele pedacinho de céu cá na Terra. E de repente, de um dia para o outro, restou apenas um bilhete.
― Chegámos! ― Disse o taxista ao parar em frente à entrada principal do hotel.
― Obrigado! ― Respondi, pagando-lhe pela corrida e saindo do carro.
― Boa noite! ― Saudou o porteiro do hotel.
― Boa noite! ― Respondi enquanto subia novamente a gola do casaco e entrava no hotel com alguma pressa, uma vez que o tempo tinha começado a arrefecer.
Depois de subir as escadas, cruzei a porta giratória e dirigi-me à receção.
― Boa noite, quarto 311. Tem correspondência para mim? ― Perguntei enquanto esperava que me dessem a chave do quarto.
― Não doutor, mas aqui tem os jornais de hoje, tal como pediu.
― Muito obrigada! Boa noite ― respondi enquanto recolhia os jornais internacionais aos quais gostava de dar uma vista de olhos antes de me deitar.
― Qual é o andar? ― Perguntou o rapaz do elevador.
― O terceiro. ― Afirmei, sabendo que ele já sabia a resposta, pois todas as noites fazia-me a mesma pergunta.
― Teve um bom dia? ― Voltou a perguntar o rapaz.
― Bom, foi uma tarde um pouco invulgar!
― Por causa do tempo?
― Sim, também ― respondi com um sorriso forçado.
― Já chegámos! Tenha uma boa noite.
― Muito obrigado, vou tentar ― falei, saindo do elevador e dirigindo-me ao meu quarto.
Ao fundo do corredor, havia uma pequena suite, que disponha de um pequeno escritório e de um quarto. Não era muito grande, mas era o melhor que tinha conseguido negociar com o diretor do hotel, já que não era habitual terem clientes alojados no mesmo quarto durante anos.
Mal abri a porta da suite, percebi que alguma coisa não estava bem. Um cheiro forte a charuto inundava a sala, algo que era óbvio que não era meu, pois eu não fumava, e muito menos recebia convidados no meu quarto, pelo que não pude evitar soltar um:
― Quem está aí?
Tentei ligar o interruptor, mas os candeeiros não acendiam, embora tivesse pressionado repetidamente a chave da luz.
― Não se preocupe doutor, está tudo bem. ― Disse uma voz vinda da minha poltrona.
Tinha passado tanto tempo naquela sala que era capaz de reconhecer cada canto e sabia bem que, no lugar de onde me falava, havia uma poltrona debaixo de um candeeiro de pé, lugar onde costumava sentar-me a ler os jornais antes de dormir.
― Quem é você? ― Perguntei, dando um passo atrás e dirigindo-me até à saída para abrir a porta e poder, pelo menos, iluminar o quarto.
Estava prestes a fazê-lo, já com a mão na maçaneta, quando notei que alguém a prendia, impedindo-me de puxar a maçaneta.
― Acalme-se, por favor! Se lhe quisesse fazer mal, não estaríamos aqui a falar.
De repente, fez-se luz atrás de mim. O homem que falava comigo, tinha acendido o candeeiro e com isso, notei como outro, encasacado e com luvas, prendia-me a mão com as suas duas mãos.
Soltei-me e voltei-me para protestar por aquela invasão de privacidade, pois, embora assim não fosse, considerava aquele espaço a minha casa.
― Calma! Já disse que não lhe queremos fazer mal ― voltou a dizer o homem sentado junto ao candeeiro, enquanto acendia um charuto.
― Não pode fumar aqui! ― Protestei.
― A sério que me surpreende que um homem como você, com o seu talento, tenha acabado neste buraco ― indicou o homem do charuto enquanto expelia uma nuvem de fumo.
― Não me venha cá com bajulações. Não sei o que querem, mas enganaram-se na pessoa ― insisti, tentando safar-me daquela situação desconfortável.
― Tenho a certeza de que a esta altura já teve tempo de traçar um perfil para mim.
― Um perfil? ―Perguntei num tom de espanto.
― Não se arme em inocente, doutor. Conhecemo-lo bem. Ou prefere que lhe recite todos os livros que escreveu sobre perfis psicológicos? ― Comentou num tom desafiador.
Aquelas palavras fizeram-me recuar aos meus tempos de faculdade, quando ainda estava a estudar e passava horas e horas na biblioteca.
A certa altura, durante uma aula de Bases Psicológicas e Biológicas da Personalidade, descobri com fascínio como era possível analisar minuciosamente as pessoas a um ponto indescritível.
A maneira de ser, sentimentos e pensamentos ficavam a olho nu diante de um bom analista, capaz de descobrir os segredos de qualquer pessoa como se fossem transparentes como um cristal.
Algo que no início comecei a ler como um passatempo, já que não fazia parte das disciplinas obrigatórias, mas que aos poucos foi fazendo parte da minha especialidade, abordando-o em diversas disciplinas, aprofundando no que atualmente conhecemos como perfis e que são tão úteis para os juízes no seu trabalho pericial e, inclusive, no âmbito dos recursos humanos na hora de selecionar o candidato ideal.
― Benjamin Franklin, Carl Gustav Jung, Albert Einstein… e atreveu-se a fazê-lo, inclusive, com Stephen Hawking. Você é corajoso ou um visionário? ― Disse o homem do charuto.
Enquanto me afastava da porta, deixei o casaco sobre um cabide e procurando numa das prateleiras da estante, retirei um livro volumoso sobre perfis e disse para ele:
― Se quiser aprender, posso emprestar-lhe um dos meus livros.
― Não vim cá para perder tempo nem para receber aulas suas, apenas quero saber se você está qualificado para isso.
― Para o quê? ― Perguntei, tentando descobrir mais alguma coisa.
― Enganámo-nos, peço desculpa ― afirmou o homem, levantando-se.
― Está a referir-se a você querer ver se sou capaz de lhe dizer, que apesar do seu sotaque fingido e das suas maneiras, aparentemente refinadas, não é nada mais, nada menos, do que o filho de um comerciante que lhe ensinou o mundo das palavras e do blefar, empregando um certo grau de teatralidade na forma como manipula o medo e o desconforto, deixando transparecer que é você quem domina a situação, quando, na verdade nem sequer faz ideia de como vou reagir. E que o seu suposto guarda-costas, não é nada mais do que o seu motorista, daí ter segurado a minha mão sobre a maçaneta com as duas mãos e não com uma, como seria de esperar de alguém robusto e acostumado a recorrer à violência. E que você, por exemplo, está demasiado bem-vestido para usar uns sapatos tão desgastados nas solas, e que o charuto que está a fumar nem sequer é importado, o que me indica que você viaja com frequência e que não lhe importa a qualidade, mas sim a utilidade das coisas.
― E que mais? ― Perguntou o homem do charuto, sentando-se novamente no sofá do qual acabara de se levantar.
― Está claro que precisam de mim