«Qual problema?».
«Ser-te-á revelado no tempo certo, mas fica sabendo que o teu nascimento trouxe muita confusão na Ordem. O cardeal Montagnard mandou regressar do Zimbabwe Cecília, um antigo membro da Ordem, encarregando-a de criar-te, enquanto o cardeal Siringer exigiu um controlo externo, o padre August. Só cheguei mais tarde, quando a Cecília pediu uma ajuda amiga capaz de apoiá-la» interveio o padre.
Então não era verdade que quando a minha mãe morreu, a tia encontrava-se em Portugal, pensei.
«Sabes, nunca tinha tido uma filha e tinha medo de errar contigo, além que o padre August criticava todas as minhas escolhas e dizia que tinha sido um erro teres sido confiada a mim, porque me tinha apegado demasiado a ti e isso não me permitia ser objetiva. Dominick era um velho amigo meu e confiava cegamente nele. Além disso, conhecia a Ordem e as suas leis, assim decidiu envolver-se com o objetivo de dar-te uma determinada educação religiosa» contou a tia.
Agora percebo porque nunca tinha gostado do padre August.
Tinha sempre a sensação que me controlava e a tia não se sentia confortável na sua presença.
Mas, de momento, o que me deixava mais perplexa era o motivo de tanto secretismo, sobretudo da parte da minha tia, que apesar de tudo era a prima da minha mãe.
Mencionei-o à tia, que me olhou com uma expressão ainda mais angustiada.
«Bastou-me ter-te nos braços por apenas um minuto, que percebi o quanto te adorava. Eras a criatura mais doce e bela do mundo. Todas as vezes que me sorrias, a escolha de abandonar os votos para estar contigo, tornava-se menos penosa. Apercebi-me que podia ser feliz assim, mesmo servindo o Senhor de forma diferente. Todavia...» iniciou a tia, mas as palavras não lhe saiam.
«Todavia ela não é realmente tua tia, ainda que te ame como uma mãe ama o próprio filho» o padre Dominick terminou por ela a frase com um ar de sofrimento.
Fiquei petrificada.
A tia Cecília não era minha tia?
Tudo, menos isto.
Isto era demasiado.
Não consegui pronunciar nenhuma palavra.
Estava transtornada.
Olhei a minha tia, ao meu lado, no banco posterior do carro, que chorava baixinho, repetindo continuamente: «Perdoa-me».
Pareceu-me entrar em transe, num estado de semiconsciência.
Todas as minhas certezas caíram por terra.
Passaram-se horas.
Permaneci naquele estado até chegarmos a Dublin ao final da tarde.
Lembro-me apenas que o carro parou mesmo em frente a um hotel, o Jolly Hotel.
O homem da receção nem nos perguntou pelos documentos, entregou-nos simplesmente as chaves dos quartos.
Eu e a tia fomos levadas para o quarto 112, enquanto o padre Dominick dirigiu-se sozinho para a porta 115.
O quarto era pequeno com papel de parede amarelo, tal como as cortinas e as cobertas.
Havia duas camas de solteiro. Sentei-me sobre a que estava ao fundo, perto da janela.
Posei a minha mala no chão e observei a estrada iluminada pelos postes de luz, no exterior da janela.
«Tens fome?» perguntou-me a tia, fazendo-me saltar de susto. Depois de me revelar que não era minha tia, não me tinha dirigido mais a palavra.
«Não, obrigada».
«Tens a certeza? Não comeste nada, nem mesmo no autogrill onde paramos para almoçar» mencionou preocupada.
Apeteceu-me perguntar-lhe porque se interessava tanto por mim, uma vez que eu não lhe era nada, mas não o fiz.
Abanei a cabeça.
Ambas sem jantar, metemo-nos por baixo dos cobertores, apesar de ainda ser muito cedo.
Não tinha sono nenhum.
A minha mente estava cheia de pensamentos, mas aquele que me martelava a cabeça era: a tia, ou melhor, a irmã Cecília.
Se isto for sequer o seu verdadeiro nome.
Passei uma hora a quebrar a cabeça à procura de um sentido, de uma lógica sobre todo aquele assunto.
Vinte e quatro horas atrás fazia zapping sentada no sofá da sala, enquanto a tia reorganizava a cozinha e agora estava numa cama desconfortadíssima, num quarto de hotel ridículo, com uma mulher talvez desconhecida.
Isto tudo não fazia sentido.
Quero de volta a minha casa e a minha tia.
Apercebia-me que tinha sido mais belo viver na completa ignorância e ilusão, do que ir de encontro à crua e injusta realidade.
Se o padre Dominick tentasse outra vez falar-me de justiça divina, comia-o vivo!
Todavia agora estava ali. Presa naquela absurda realidade, perto da pessoa que, até há bem pouco tempo atrás, adorava mais que tudo, enquanto agora temia não a conhecer realmente.
Não consegui mais estar calada.
«Porque tomaste conta de mim em todos estes longos anos?» perguntei-lhe muito baixinho.
Estava convencida que não tinha ouvido. Não porque dormia. Sabia que não dormia, uma vez que durante o sono ressonava imenso, mas sentia a garganta a arder e o peito pesado que me sufocava e as palavras saíram-me débeis e inseguras.
«Não o imaginas?» respondeu-me com a sua habitual e familiar doçura.
«Porque te ordenaram, certo?».
«Não, tolinha. Porque gosto muito de ti. Ainda que realmente não o sejas, para mim, és a minha menina. És a coisa mais importante da minha vida. Esperava conseguir comunicar-te tudo isto em todos estes anos juntas».
Sim, sabia que me queria bem. Sempre me ajudou nos momentos de dificuldade, esteve sempre pronta a apoiar-me e nunca me fez faltar nada, apesar das diversas restrições económicas. Em tudo o que fazia, demonstrava o seu amor por mim e eu sempre me apercebi disso e recebi-o de braços abertos.
Tinha sido uma mãe, mas também uma amiga, uma vez que por causa da minha saúde, nunca consegui fazer amigos. Todos os meus companheiros sempre foram desconfiados em relação a mim, por viver com uma tia e estar frequentemente doente, para além de ser a inimiga número um de Patty Shue, a amiga número um de todos os outros.
«Sei que me queres bem e também eu te quero bem, mas todas estas novidades fizeram curto-circuito no meu cérebro. Não sei mais quem sou, quem tu és...» desabafei.
«Tens razão. Quis dizer-te a verdade tantas vezes, mas a Ordem proibiu-me terminantemente».
«Podias ter-me dito às escondidas. Fazia de conta que não sabia de nada com o padre August e Dominick».
A tia começou a rir.
Também eu sorri e percebi que tudo tinha ficado como antes.
Cecília era sempre a minha querida tia, que escutava as minhas tontices e se ria delas.
«Escuta, Vera. Tenho muita pena de não te ter dito a verdade, mas fi-lo para o teu bem. Prometo-te que quando encontrarmos o cardeal Siringer, lhe pedirei autorização para te contar toda a verdade. A este ponto, é justo que saibas a história completa» disse a tia muito séria.
«Pois, ainda devo saber quem me quer morta» tentei desdramatizar.
«Nunca permitirei que te façam mal» afirmou determinada.
Naquela