«Cecília, têm que se ir embora! Agora!» gritou o padre Dominick aterrorizado.
«O que está a acontecer?» perguntou-lhe a tia, tentando não mostrar a sua angústia.
«Eles sabem tudo e estão a chegar!» gritou novamente o padre Dominick.
«Eles quem?» intrometi-me alarmada.
Ninguém me respondeu, mas percebi que a tia sabia a quem o padre se referia, porque levou a mão direita à boca, para tentar sufocar um grito.
«Mas como é possível?» sussurrou a tia com um fio de voz.
«Assassinaram-no! Assassinaram o cardeal Montagnard, depois de o terem feito confessar! Agora eles sabem tudo e vocês não estão mais seguras. Virão procurá-las e quando o fizerem, apanharão a Vera e vão matá-la».
Eu? Mas o que tinha a ver com isto tudo?
Estava tão chocada que não consegui abrir a boca.
«Dispararam-lhe em vez de usarem o seu habitual modo de atacar. Por isso, a Ordem levou tanto tempo a perceber quem era o culpado do homicídio. De certeza que foi o Blake. Só ele e o seu bando são capazes de um crime semelhante. Ninguém sabe o que aconteceu realmente, mas ao que parece o cardeal contou tudo ao Blake, provavelmente sob tortura» continuou o padre Dominick.
«Mas é terrível!».
«Pois e agora devem fugir. Já vos reservei um quarto num hotel em Dublin. Quando chegarem, receberemos novas ordens do cardeal Siringer, que nos quer encontrar».
«Mas como fazemos?» suspirou a tia abalada.
Naquela quinta estava a sua casa, a sua vida.
E também a minha.
«Temos que partir imediatamente. Vamos viajar toda a noite, se necessário. Seremos escoltados por dois membros de confiança da Ordem, sob coordenação do cardeal Siringer, que nos levarão primeiro ao hotel e depois ao lugar prefixado para o encontro. Por isso, mexam-se! Levem o mínimo indispensável e vamos embora!» recomeçou a gritar o padre Dominick.
Por alguns segundos, que me pareceram horas, a tia e o padre olharam-se intensamente nos olhos, depois disso, como que movida por uma força inexplicável, a tia agarrou-me por um braço e arrastou-me pelas escadas até ao meu quarto.
Em frente à porta, abraçou-me e sussurrou-me docemente ao ouvido: «Não te preocupes. Estarei sempre presente para te defender. Não permito que ninguém te faça mal. Foi assim por dezassete anos e será sempre, enquanto for viva».
«Tia, o que está a acontecer?» consegui perguntar baixinho.
«Está calma. Agora vai para o teu quarto. Tens três minutos para pegares na mala que está debaixo da tua cama e enchê-la com aquilo que te pode ser útil nos próximos dias. Quando estivermos longe daqui te explicarei tudo. Prometo-te».
Não tive outra escolha.
Corri para o meu quarto, abri o guarda-roupa e comecei a encher a mala que tirei de debaixo da cama, com camisolas e calças. Alguma roupa interior, o estojo de maquilhagem e as minhas poupanças. Estava prestes a fechar a bagagem, quando notei a foto que tinha sobre a mesa-de-cabeceira perto da cama. Era uma foto minha com a tia abraçadas em frente à cancela da quinta.
Adorava aquela foto tirada pelo Ahmed há alguns anos atrás.
Coloquei-a também e fechei o zip da mala.
Saí do meu quarto, olhando-o mais uma vez. Aquele tinha sido o meu quarto de infância, o meu refúgio.
Tinha esperança de um dia poder voltar ali, mas alguma coisa me dizia que aquele era um adeus.
Fechei a porta do quarto atrás de mim com um véu de tristeza.
Mal desci para o piso inferior, o padre Dominick agarrou-me pelas costas e arrastou-me para fora de casa em direção a um carro negro, que estava estacionado em frente à cancela da quinta.
Mal me viram, os dois homens desconhecidos entraram no carro e o mais forte pôs-se ao volante.
«Quem são aqueles dois?» perguntei.
«Não há tempo para explicações» abreviou o padre, fazendo-me entrar no carro, para depois apressar-se a ajudar a tia, que estava a dois passos da viatura. Nesse instante, chegou Ahmed.
«Ahmed, chegou o momento do qual falámos com frequência. Adeus» a tia cumprimentou-o, pouco antes de entrar no carro empurrada pelo padre Dominick.
«Fechar a porta e partir. Adeus, Cecília. Vera, vou ter saudades tuas» cumprimentou-nos o Ahmed com um ar triste.
«Adeus, mas talvez nos voltemos a ver» confortei-o, mas ele sacudiu a cabeça e foi-se embora, no mesmo instante em que a BMW negra também partiu.
Senti uma onda de infelicidade propagar-se no meu coração.
Comparando com aquilo, o que tinha sentido pelo Kevin depois de ter sabido do seu futuro casamento, parecia uma ninharia.
Gostava muito do Ahmed e nunca pensei que um dia, ficaria sozinha.
Mal o carro partiu a toda a velocidade, senti o suspiro de alívio da tia e do Dominick.
Apenas eu permanecia tensa como uma corda de violino.
«O Ahmed não vem connosco?» tentei perguntar.
«Não, Vera. O Ahmed tem que ficar a tratar dos nossos assuntos. Dará a casa a uma instituição de caridade e avisará a escola da tua partida, informando-a da tua transferência inesperada devido a problemas de saúde e depois partirá para a Tunísia com o dinheiro que lhe deixei numa conta corrente particular, para ser usado só em caso de necessidade. Na verdade, há anos que isto está tudo planeado» explicou-me a tia, acariciando-me a cabeça.
Tudo isto era ainda incompreensível para mim. Mil pensamentos e frases pronunciadas giravam na minha mente a uma velocidade incontrolável. Não conseguia memorizar um pormenor, que depois desaparecia para dar lugar a outra coisa qualquer.
Ahmed. A escola. Kevin. Patty Shue. Ron. A quinta. Eles.
O cardeal Montagnard. Dublin. O cardeal Siringer.
Tantos, demasiados pensamentos passavam a grande velocidade na minha mente.
Pensava na escola. Estava a recuperar a biologia e ainda tinha que receber a nota do relatório de história.
Para além disso, continuava zangada com a Patty por ter dito a todos que estava noiva do Ron.
Que sentido tinha tudo isto, se no dia seguinte estarei, sabe-se lá onde?
Não voltaria a ver o Kevin. Porquê levar tão a peito o seu casamento com a Clara, se eu não ia estar presente na mesma.
Talvez estarei morta em maio. Não me tinha esquecido que alguém me procurava, depois de ter morto um homem. Era óbvio que tinha reservado para mim o mesmo final cruel.
Eles.
Eles, quem?
Ainda ninguém me tinha explicado quem era esta gente e o que queria de mim.
Tentei pela enésima vez.
«Por favor, expliquei-me porque está a acontecer isto tudo e quem são eles?».
A tia olhou-me com os olhos cheios de tristeza e desespero. Também o padre Dominick olhou-me angustiado.
«Olha, tu és uma rapariga especial» a tia iniciou com esforço.
«Em que sentido?».
«Nasceste em circunstâncias especiais, inesperadas e ainda em parte desconhecidas. Só o cardeal Montagnard sabia a verdade e quando a tua mãe morreu, ele decidiu tomar