A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
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Жанр произведения: Зарубежная классика
Год издания: 0
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Augusto com effusão. – É isso mesmo, se lhe não custasse…

      – Irei.

      – É que… eu lhe digo, eu tinha hoje de ir ao ensaio da philarmonica… Percebe o senhor? Os Reis estão ahi á porta e as outras festas do Natal, e não ha tempo a perder… Percebe? E eu tenho ainda umas peças do Trovador para ensinar á minha gente. São muito bonitas… Poh! poh! poh! E então este anno, que pelos modos temos cá o conselheiro e mais o pequeno… Não contando com esse sujeito que ahi chegou a Alvapenha. Chama-se Henrique de Souzellas, é sobrinho da velha, da D. Dorothéa, e julgo que ainda aparentado no Mosteiro. Lá chamam-lhe primo. Esteve lá esta manhã um par de horas, logo que saiu da minha repartição. Dizem-me que é filhote de Lisboa, solteiro, rico e sem modo de vida. Rico e sem modo de vida! Que lhe parece, hein? Olhe que sempre ha gente muito feliz! Aqui para nós, sabe ao que me cheira a visita d'este senhor? Aquillo é mosca que vem ao cheiro do mel. Que diz, hein? Ninguem me tira d'isto. Pois não lhe parece, hein?

      – Não sei bem o que quer dizer com a imagem – respondeu Augusto, levemente enfadado. – Além de que não posso adivinhar as intenções de um homem que pela primeira vez encontrei esta manhã.

      – Pois está claro que não; nem eu; mas emfim uma pessoa logo tira pelo que vê… Ora pois diga, um rapaz de Lisboa, afeito a divertimentos, a boa musica, et coetera, andar leguas e leguas para se metter n'este desterro… Porque isto é um desterro. Sim, deve concordar que não é natural. Mas se a gente se lembrar de que a morgadinha, et coetera… O senhor bem me percebe… Todos, hoje em dia, sabem o preço ao dinheiro, meu amigo.

      A verbosidade do mestre Pertunhas estava evidentemente incommodando Augusto, que não redarguia.

      – Nada, nada; alli anda plano, com certeza. Pelos modos, já depois de ámanhã vae o rapaz acompanhar as pequenas á ermida da Saude. Ah!.. mas agora me lembro! o senhor é tambem da sucia.

      – Eu?!

      – Com certeza. Disse-m'o o Damião, que tem ordem das pequenas para o convidar. Se ainda não recebeu o recado, ha de recebel-o. Em todo o caso, observe-o e verá se eu tenho razão.

      – Vou jantar, sr. Pertunhas, que já ha muito para isso me chamou a criada – disse Augusto, erguendo-se como para fugir áquella conversa. – Em seguida irei aos seus rapazes.

      – Então vá, vá. Deus lhe pague o favor que me faz e permitta que eu lhe não peça muitos d'estes. E eu tenho esperanças… Sabe que ando com ideias de arranjar o lugar de recebedor, que está, como diz o outro, a encher dias? Já falei ao conselheiro; mas o conselheiro promette muito e falta melhor, sobretudo a um homem que não tenha influencia em eleições. O sr. Joãozinho das Perdizes interessa-se por mim, é verdade; mas, por outro lado, o Seabra brazileiro faz-me guerra. Eu ando a vêr se consigo pôr o Seabra a meu favor, porque emfim… Mas vá, vá jantar, que eu espero.

      – Se quizer fazer-me companhia…

      – Muito obrigado. Eu já jantei. O meio dia é a minha hora. Jante á sua vontade.

      Augusto saiu da sala. Mestre Bento Pertunhas, ficando só, deu algumas voltas cantarolando, sentou-se depois, e pegando na pasta de Augusto, poz-se a examinar os papeis que ella continha.

      Ao mesmo tempo simulava umas variações de trompa, á fôrça de contracções e esgares dos labios.

      A pasta, victima da indiscreção do mestre, era a mesma que Augusto trazia, quando o vimos no Mosteiro.

      Entre os documentos contidos n'ella algum achou o mestre Pertunhas mais curioso do que as escriptas e themas dos discipulos, pois, ao lêl-o, desenhou-se-lhe no semblante a mais intensa curiosidade e cessou de todo a exhibição acustica, que com tanto ardor encetára.

      Leu-o até o fim com crescente avidez; e depois, olhando em volta de si, para verificar que não era observado, dobrou-o e sorrateiramente o escondeu no bolso. Fechou outra vez a pasta, pousou-a no sitio d'onde a tirára, continuou a ler ou a fingir que lia com toda a attenção um livro e encetou novas variações de trompa.

      – Então já! Apre! Isso é jantar a vapor – disse o latinista, pondo-se a pé, logo que Augusto voltou.

      E momentos depois sairam juntos.

      Querendo poupar os leitores á semsaboria de assistir a uma lição de latim e a um ensaio da philarmonica, deixal-os-hemos ambos, para voltarmos ao Mosteiro.

      Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as duas primas sentadas ao parapeito do muro da quinta, d'onde, por sobre almargens e pomares vizinhos, a vista se espraiava em amplissimo horizonte até umas nuvens, que pareciam limital-o.

      D. Victoria saboreava, no seu quarto, as delicias da sesta habitual. As creanças brincavam a alguma distancia, e os risos e os clamores d'ellas vinham como um chilrear de passaros aos ouvidos das duas raparigas, que, a cada momento, se surprehendiam em meditativo silencio.

      A natureza estava serenissima. No occidente desenhavam-se estreitos e longos traços nebulosos, a que o sol dava um colorido tão ardente, que se o pintor paizagista o produzisse na palheta, hesitaria, ao passal-o á tela, com receio de que o acoimassem de exaggerado. O verde dos campos apresentava a gradação vigorosa, que a luz de um formoso dia de inverno costuma dar-lhe.

      Christina interrompeu o silencio por fim.

      – O que eu não sei – principiou ella – é como o primo Henrique de Souzellas…

      – Onze! – atalhou a morgadinha, sem desviar os olhos do ponto da perspectiva, que fitava.

      – Onze quê? – perguntou Christina, erguendo os d'ella.

      – Com esta são onze as vezes que, esta tarde, depois de um longo silencio, abres a bôca para me falares no primo Henrique de Souzellas, uma vez que está decidido que seja primo.

      Christina fez um gesto de despeito e córou levemente.

      – E então que queres dizer com isso?

      – Eu? Nada. Digo só que são onze vezes com esta.

      – Não sabia que era prohibido falar-te no primo Henrique. Bem, n'esse caso falaremos em outra coisa. Está um tempo muito bonito: nem parece dezembro.

      – Não; vae magnifico para os nabaes – replicou Magdalena zombeteiramente.

      – Se não mudar com a nova lua – continuou Christina, ainda formalisada.

      – É excellente para seccar os milhos, que bem precisavam ainda d'isso, principalmente os das terras baixas.

      E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha desatou a rir.

      – Não sei de que te ris! – acudiu Christina, cada vez mais séria. – Pois não é esta a conversa de que tu gostas?

      – Ai, muito. Eu sou doida por estas coisas de lavoura; bem sabes. – E, mudando repentinamente de tom, accrescentou: – Ora vamos, Christe; não te zangues commigo.

      – Não, mas é que ás vezes não te entendo, a falar verdade. Vens com umas coisas que mettem raiva – respondeu-lhe Christina, sempre agastada.

      – Já estou arrependida; peço perdão. Fala lá á tua vontade no primo Henrique, fala; que eu não contarei as vezes que o fizeres.

      Christina reproduziu o gesto de impaciencia.

      – Agradeço a tua generosidade, mas já não tenho mais que dizer d'elle agora; por isso…

      – Pelo menos completa a duzia.

      – Lena! Então! Olha que se continuas com isso, fazes-me sair d'aqui.

      – Sempre queria que te vissem agora, Christe, esses que andam por ahi a gabar a docilidade do teu genio, as branduras da tua indole; queria que te vissem essa cara arrenegada, para saberem que tambem ha um acidozinho na tal doçura… Mas fazes-me a graça de só para mim teres d'essas franquezas.

      Christina sorriu, ainda que não de todo aplacada, ao ouvir esta reflexão da prima.

      – E