O monologo do desconsolado conjuge e a leitura de Ermelinda foram interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua.
O dinheiro paga tudo,
Não se fica a dever nada;
Toma, toma o limão verde,
Ó da fresca limonada.
E logo em seguida estalaram as taboas do soalho no corredor sob uns passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a figura agigantada e herculea do recoveiro Cancella, pae da Ermelinda. Cancella, ou o João Herodes, que assim tambem lhe chamavam por ter creado, nos autos em que era actor applaudido e popular, o typo do sanguinario e infanticida rei da Judéa, fôra pela natureza dotado de uma estatura e robustez, dignas de Adamastor.
Encontrava-se n'elle uma d'essas felicissimas realisações dos temperamentos sanguineos que, sem ameaçarem de insultos apopleticos, dão riqueza ao sangue, vigor aos musculos e á physionomia o aberto e colorido da saude e os reflexos da satisfação interior.
A barba negra e espessa cercava-lhe as faces córadas, e o natural fulgor dos olhos parecia augmentado sob o duplo arco de bastas sobrancelhas, que, quando contrahidas, os rodeavam de sombras ameaçadoras, d'onde fuzilavam relampagos. Era formidavel então!
O riso pairava-lhe porém, nos labios, quando na presença de amigos, descobrindo-lhe duas fileiras de alvissimos e bem dispostos dentes, d'esses que os excessos e absurdos culinarios ainda não deterioraram.
Parando á porta da cozinha, o Herodes (ás vezes lhe chamaremos assim, cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguem, que mais que tudo trazia na memoria – a filha. – Esta, pela sua parte, mal o reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.
O pae pegou n'ella, como se fôsse uma penna, levantou-a á altura dos labios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda palpitantes de todo aquelle intenso amor paternal.
– Ah! – exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acabava de satisfazer uma intensa necessidade do coração. – Isto consola que nem o copo de agua que a gente, em dias de calma, pede á borda da estrada, quando se leva a bôca secca e queimada de poeira! Mais do que isso me sabem estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?.. Ó sr. Augusto! tambem por cá?
– Esperava-o, Cancella.
– A mim? – continuou o homem, pousando no chão uma mala que trazia. – Pois aqui me tem. Mas, dizia eu, um homem quando anda lá fóra, e pensa no que lhe irá por casa, sente ás vezes uns sustos, que parece que lhe fazem tudo escuro… As desgraças, para succederem, não põem muito… De um momento para outro… E depois a gente ouve por lá conversas, vê coisas que parece que são agouros… e que nos fazem a noite no coração… Umas vezes é um enterro… outras, um desastre… um fogo… um… E as creanças sós, e os paes fóra de casa!.. Ai! Isto é de ralar o coração de uma pessoa… Eu bem sei que em boa companhia me fica a pequena. Aqui o compadre, tirante lá a sua aquella pelo sumo da uva… Quantos foram já hoje, compadre, hein?.. mas, tirante isso, é homem de bem: a comadre é uma santa, que só tem o defeito de querer ser santa devéras… mas emfim… tudo isso não obsta; uma coisa é uma pessoa saber o que lhe vae por casa, outra… Tremem-me as pernas sempre que entro na aldeia. A primeira alma de Christo, que encontro, estou sempre a vêr quando me vem dar alguma nova má. Salta-me cá por dentro o coração, que ninguem faz uma ideia; eu bem canto a vêr se disfarço, mas… Ai, filha da minha alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia vir achar doente!.. Assim me succedeu com tua mãe… Deixei-a uma vez tão satisfeita e alegre, e vae, quando voltei, a primeira pessoa que encontro, diz-me á queima-roupa: «Venha, sr. João, venha, que já não vem sem tempo. Corra a casa, se ainda quer vêr sua mulher…» Foi como se recebesse uma descarga em cheio no peito… corri, e…
A commoção impediu-o de continuar; disfarçou como envergonhado d'aquella fraqueza, beijando a filha outra vez.
Ermelinda percebeu a perturbação do pae e disse-lhe carinhosamente:
– Para que está agora a pensar n'essas coisas que o affligem, meu pae?
– Deixa-me cá, rapariga. Isto ás vezes tambem faz bem. Mas, por isso, quando entro em casa e te vejo, pequena, e te vejo com boas côres e alegre… nem eu sei o que tem mão em mim, que não me ponho a dançar. Ah!.. ah!.. Ninguem tem uma filha como eu! Olhe que não, sr. Augusto; mal fica a mim dizel-o, mas… Lá por Lisboa e por o Porto ha muita menina galante, isso ha; muita inglezinha loura, bonitas como anjos, mas cabellos assim dourados? – e passava com orgulho os dedos pelos bastos cabellos de Ermelinda – mas uma pelle assim delicada, – e afagava-lhe com as mãos a face, quasi a mêdo – mas olhos assim a metterem-se mesmo pelo coração á gente? – e beijava-lh'os com paixão – isso é que eu ainda não vi, nem tenho de vêr. Como o Senhor concedeu um anjo d'estes a um selvagem como eu, é que não sei… É a imagem da mãe!.. Ella tambem era poucochinho de si… miudinha e… Mas não pensemos n'estas coisas. Sim, senhores; eis-me aqui outra vez, e por signal com a minha vida por arranjar e eu posto á taramela. Trago-lhe uma encommenda, sr. Augusto, e muitos recados, muitos.
– Já sei; Angelo escreveu-me.
– Escreveu? Ah, sr. Augusto, que rapaz aquelle! Aquillo é uma perola! Com tres milheiros de demonios do inferno! d'alli ha de sair coisa grande. Eu não queria morrer sem vêr o que saía d'alli. Brinca como uma creança, mas, quando quer, põe-se sério, e fala como homem. E nada de soberbas, nem de ares enfastiados, como tomam aquelles senhores da cidade, quando conversam com uma pessoa rustica… Qual historia! Elle tudo quer saber, tudo pergunta… isso é um nunca acabar, quando lá me pilha… Então como vae fulano? e sicrano? e se já se fez aquella casa, e se já acabou aquella obra, e se já casou este, e se inda vive aquelle, e mais para aqui, e mais para acolá, e tudo quer muito explicado… Ah! ah! ah!.. tem diabo o pequeno… Pois cá a respeito da rapariga?.. Isso é uma comedia!.. Não se farta de me ouvir falar d'ella… Ah, sr. Augusto, ás vezes chego a ter pena de que isto nascesse minha filha.
Ermelinda fitou o pae com olhos espantados.
– Sim, filha, – proseguiu elle. – Deus não te devia dar a um homem como eu, que emfim… Com os diabos! lá alma e coração… não quero que haja ahi quem me leve a barra adeante. Eu por um amigo… e com mil demonios, até por um inimigo, se não fôr soberbo, vamos lá, dou a camisa do corpo… Mas o mundo… Bem, bem, eu cá me entendo. Vamos á minha tarefa. Mas que tem você estado para ahi a prégar, compadre, desde que eu entrei? Humh! humh! parece-me que já se cantou a gloria, hoje, visto que já se está ao sermão.
Effectivamente Zé P'reira tinha apenas concedido ao seu compadre um olhar de distracção e um aceno de mão, e voltára de novo ás suas queixas amargas contra a sorte e contra a esposa.
Interrogado pelo Herodes, Zé P'reira reproduziu uma das suas lamentações; o compadre, emquanto desenfardelava a mala, ia cortando com reflexões proprias essa longa jeremiada.
– Então com que a ti' Zefa deixou-o sem caldo, hein? É mal feito, a falar a verdade. Lume apagado em casa de familia é coisa triste… Aqui está um livro para si, sr. Augusto… Mas deixe lá, compadre, que a minha pequena arranja-lhe n'um ai algumas berças… Tambem eu estou em jejum desde as cinco horas da manhã… mas estes missionarios! Ah! com seiscentas mil duzias de demonios, eu ainda queria um dia…
– Deus nosso Senhor seja n'esta casa – disse uma voz gemida á porta da cozinha.
– E o demo na do abbade – resmungou Herodes.
Era a sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, typo de beata, que dispensa descripção, que regressava a casa depois de completar o cyclo das suas devoções.
– Viva a comadre! – disse o João Cancella, continuando a mexer na mala.
Ermelinda foi beijar a mão á madrinha.
Augusto