A Morgadinha dos Cannaviaes. Dinis Júlio. Читать онлайн. Newlib. NEWLIB.NET

Автор: Dinis Júlio
Издательство: Public Domain
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Жанр произведения: Зарубежная классика
Год издания: 0
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fitou o herbanario com espanto. Ninguem o suppunha rico; como podia elle pois obter aquelles livros, alguns dos quaes eram de preço? O velho porém disse-lhe, ao perceber-lhe a surpreza:

      – Não queiras saber da minha vida, rapaz. Suppõe que eu tenho a servir-me uma vara de condão ou uma fada qualquer, e deixa correr.

      Augusto acabou por persuadir-se de que o herbanario tinha accumulado riquezas, á fôrça de economias: porque de economias vivera sempre.

      De pequeno merecera áquelle velho uma singular sympathia, e com affecto de pae fôra sempre tratado por elle.

      Resignou-se a acceitar sem reflexões; até porque sabia ser facil o escandalisar o velho com ellas. O que fazia era evitar, na presença d'elle, qualquer palavra que pudésse denunciar desejos de possuir um livro qualquer. Mas o velho, como se tivesse de facto algum poder occulto a informal-o, ás vezes parecia adivinhar; e trazia-lhe livros que Augusto devéras desejava, mas a respeito dos quaes tinha a certeza de lhe não ter falado, nem eram d'aquelles que o velho conhecia.

      A seu pesar via-se quasi inclinado a adoptar a crença supersticiosa do povo a respeito d'aquelle seu velho amigo.

      Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Angelo as informações, pelas quaes o velho se guiava na escolha. Não lhe attribuia porém o presente, porque as economias de Angelo não chegavam para tanto.

      Depois de tudo quanto temos dito de Augusto, poderá ainda o leitor estranhar os ares pensativos com que o vemos?

      Poucos passos andados, depois que saiu do Mosteiro, encontrou Augusto a distribuidora das cartas, que lhe entregou uma sobrescriptada para elle. Era de Angelo.

      Augusto abriu-a immediatamente e leu-a ainda pelo caminho.

      Era uma extensa carta, em que se succediam os periodos em um d'esses longos, incoherentes e diffusos arrazoados, que constituem a essencia de uma carta de amigo para amigo.

      Angelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças e de projectos, projectos que, n'aquellas idades, nascem e morrem a todo o instante. Terminava esta carta, em que lhe participava a sua vinda á aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:

      «Peço-lhe que diga á Lindita que se não esqueça de mim. Dentro de poucos dias conto ir vêr os coelhos do quintal d'ella, e ajudal-a a tirar a agua do poço. O pae d'ella chega ahi ao mesmo tempo que esta carta; leva um livro para si.»

      Augusto sorriu, ao ler o post-scriptum.

      – Pobre Angelo! – murmurou elle, – Deus não permitta que sobreviva á tua ultima creancice essa sympathia por Ermelinda. Estas generosas affeições de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o coração.

      Havia tanta amargura n'estas reflexões de Augusto!

      E, como absorvido n'ellas, caminhou para casa do recoveiro Cancella, que era o pae da pequena, a quem na carta se alludia.

      VII

      A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das mais estreitas ruas da aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da sua occupada e laboriosa vida.

      Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o ámanhã já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a multidão nas ruas e feiras da cidade; no outro entretinha os curiosos da sua terra, deixando-lhes entrever os thesouros da experiencia adquirida á custa de muitos annos de fadigas.

      As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que conjunctamente vieram, não destruiram totalmente esse typo dos antigos tempos, anterior a ellas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes limite á existencia, passaram, sustentados pela fôrça dos habitos e justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe quando de vez acabarão. Mas Cancella era além d'isso um recoveiro de uma especie rara e superior. Em todas as profissões ha sempre, no meio do vulgo, que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia dos gôsos, superiores aos interesses, que ellas podem offerecer, certo grupo de escolhidos, que as idealisam, e enxergam um raio de poesia através das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella era d'estes; era o poeta da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um touriste, e assim aproveitava todos os ensejos que se lhe offerecessem de explorar algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.

      Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do conselheiro, pae de Magdalena, com as familias da aldeia, e a barateza relativa das recovagens operadas por este meio primitivo, proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as quaes o Cancella de boamente aproveitava. Era de uma d'essas expedições que elle devia voltar aquella manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.

      Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a ainda fechada; escutou á fechadura, mas não pôde verificar o menor signal de que alguem estivesse dentro.

      – É cêdo ainda – pensou comsigo. – Vejamos se estará em casa do compadre.

      Seguiu mais para deante pela rua por onde viera. – A poucos passos mais, e do lado opposto, deparou-se-lhe outra casa de aspecto não menos rustico do que a primeira, uma pequena casa terrea, de uma só porta e uma só janella, e com o respectivo quintal ao fundo.

      Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada; julgando que seria o Cancella, de quem o proprietario era, além de vizinho, confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava apenas cerrada e entrou.

      A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado á volta de cruzes de pau, para as devoções da via sacra, e de imagens de santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos. Mais do que os outros enramalhetado e enfeitado, via-se alli o bento registo de uma confraria, havia pouco tempo instituida na terra pelos missionarios, o qual occupava o logar de honra n'aquella devota exposição.

      Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta confraria, sociedade um tanto mysteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só visavam a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se apenas, em paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, teem saudades já. Os missionarios, certos evangelisadores em terras onde a palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual entraram os martyres no céo, lá andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa a acção d'esta historia, plantando a vinha, que elles chamavam do Senhor; as mulheres, abandonando os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto catholico era por elles cada vez mais arrebicado com orações absurdas e ceremonias ridiculas, e o eterno anathema da ignorancia contra o progresso da sociedade servia de thema predilecto aos seus barbaros discursos.

      Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa, a sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina do casal em questão, tomára por modo de vida as devoções da igreja, onde ia chorar as desgraças da humanidade, que tão fóra via andar da estrada direita.

      Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando a alcova conjugal, que era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e folhudas ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia á cozinha d'onde lhe continuava a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o attrahira.

      Ao contrario do que esperava, porém, só uma pessoa encontrou na cozinha, comquanto falasse com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.

      Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do Enxerto, ou vulgarmente chamado ti' Zé P'reira – nome que lhe vinha do popular e ruidoso instrumento, o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje aquelle nome. – Era muito para vêr e admirar a mestria, com que o nosso homem o sabia tocar nas festas e arraiaes, á frente das procissões e cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades publicas.

      O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e tantos annos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestigios evidentes das suas sympathias pela divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo da sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perenne sabatina com a sua cara metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no officio de hortelão e, aos domingos