Travára-se animada conversação entre as pessoas presentes, e principalmente entre Henrique, D. Victoria e Magdalena.
D. Victoria quiz ser informada da doença de Henrique. Este passou a fazer-lhe uma exposição igual, com pequenas variantes, á que fizera á tia.
Mencionou, como a ella, aquelles vagos symptomas, aquellas tristezas, impaciencias e desalentos, que tão ingenuamente a boa senhora classificára como mania.
Emquanto Henrique falava, Magdalena poz-se a rir.
Henrique tornou para ella os olhos.
– Ó menina, de que ris tu? – perguntou D. Victoria, com certo tom de severidade.
– Rio-me d'aquella doença, tia. Pois já viu alguem padecer d'aquillo? Ora diga?
– Eu?.. mas…
– Pode dizer que não. E comtudo o primo Henrique não mente. Ha d'aquellas doenças na cidade, ha; mas na aldeia são tão raras, que eu mesma as estranho já, eu que as vi em outro tempo…
– Então não crê na realidade d'ellas.
– Não lhes estou a dizer que sim? Ouço até que já teem levado ao suicidio. Acredito-o. Os habitos da civilisação affeiçoam a seu modo a natureza humana e criam molestias novas, que nem por isso são menos naturaes. Mas que quer, primo? A minha estranheza, ao vêr um d'esses doentes em plena aldeia, não é modificada por todas essas considerações. É como um homem de casaca e gravata branca; não ha nada mais sério e mais grave n'uma sala de baile, mas colloque-m'o n'um monte, e diga se o pode olhar a sério.
– Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob pena de zombarem de mim.
– Tanto não digo; mas não o entenderão; isso não.
– Porém a minha doença não é só d'essas, que se não dão na aldeia, prima Magdalena; eu creio que verdadeiras desordens organicas…
– Ah! tambem? – Com esse aspecto de robustez?!..
– Se eu sei o que tu estás ahi a dizer Lena! – disse D. Victoria, que não tinha percebido bem o dialogo.
– É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao primo Henrique todos os maus habitos da cidade, com que veio para aqui. Sem isso não pode curar-se.
– Sujeitar-me-hei da melhor vontade a tão agradavel dominio.
– Principia mal, se principia com uma fineza. Já o avisei ha pouco…
– Será necessario tornar-me grosseiro, para me salvar? N'esse caso renuncio á cura.
– Grosseiro, não; basta que seja razoavel e sobretudo…
– Acabe.
– Acabo? eu sei? Eu ás vezes sou sincera de mais.
– Eu adoro as sinceridades.
– Já que o quer… É preciso que seja razoavel e sobretudo… desaffectado.
Henrique de Souzellas mordeu ligeiramente os labios, córando.
– Então acha?..
– Acho que está sempre a imaginar-se n'um salão; faz uns gastos de galanteria, desnecessarios e perdidos.
– Ó meninos, eu não vos entendo – repetia D. Victoria.
Magdalena sorriu.
– Digo eu que…
Um criado entrando com as cartas do correio não a deixou continuar.
– Sempre chegou o correio! – exclamou Magdalena com vivacidade, recebendo as cartas. – Por que veio tão tarde?
– A mulher contou-me lá umas historias de uma quéda, e…
– Coitada! Aconteceu-lhe algum mal?
– Esteja descançada, minha senhora. Ella partiu já e era um gôsto vêl-a a correr.
Magdalena abriu com pressa a carta recebida.
– É de meu pae – disse ella, olhando-lhe para a lettra e, depois de pedir licença, começou a ler para si.
– Pois agora – dizia, n'este meio tempo, D. Victoria a Henrique – o que deve é aproveitar estes bonitos dias para dar alguns passeios. As pequenas acompanham-n'o. Aonde me dizias tu no outro dia que querias ir, Christina?
– Eu! disse Christina, córando.
– Tu, sim, menina. Inda hontem me falaste n'isso. Ora onde era?..
– Á Senhora da Saude, mamã.
– Ai, é verdade, á Senhora da Saude. Ahi está já um passeio bonito. Vê? Saem d'aqui uma manhã cêdo, levam alguma coisa para lá comer, porque o ar do monte abre o appetite, e a cavallo estão lá n'um instante…
– A cavallo, mamã! d'aqui á Senhora da Saude? Ora! Vae-se muito bem a pé – notou Christina do lado.
– Isso é por os açudes.
– Pois por onde haviamos de ir?
– Por a Granja, que é melhor.
– Por a Granja! É uma legua!
– Que tem? mas escusam de trepar como cabras por o lado dos açudes, que é até perigoso; e depois para que hão de ir a pé, se para ahi estão os cavallos sem fazerem nada? É vontade de se cançarem.
– Mas appetece ainda mais n'este tempo. Só se… só se alli o sr. Henrique… – disse Christina, embaraçada ao continuar.
– Eu o quê, minha senhora?
– Perdão – interrompeu D. Victoria. – Por que não has de tu chamar primo ao primo Henrique? pois não chamamos tia á tia Dorothéa?
– Por isso mesmo, mamã, – respondeu Christina – os sobrinhos da tia Dorothéa não são…
– Não averiguemos d'esses parentescos, priminha, – acudiu Henrique – eu acceito a proposta da mamã, peço para ser considerado do numero de seus primos.
Christina baixou os olhos, sorrindo.
Henrique proseguiu:
– Mas parece que receiava por mim, quando falou em ir a pé á Senhora da Saude. Não sei onde é o logar, mas desde já me comprometto a não cançar.
– Não tem que saber – disse D. Victoria, caminhando para uma janella. – Ella lá está. Olhe que inda é necessario saber trepar.
– Tendo duas tão galantes companheiras de viagem – tornou Henrique, depois de reparar no monte escarpado que ficava a alguma distancia d'alli, o mesmo que o almocreve lhe mostrou – parece-me que daria a pé uma volta ao globo e que subiria a correr o Pico de Tenerife.
– O que eu lhe digo, primo – accrescentou D. Victoria – é que se acautele, porque se lhes vae a fazer todas as vontades, tem que vêr.
– Inda que morresse em tão agradavel serviço, teria de agradecer a Deus a morte.
– Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento – disse Magdalena, que continuava a ler. – Logo ajustaremos contas.
– É implacavel esta nossa prima, não acha? – perguntou Henrique, sorrindo, a Christina, que por unica resposta só soube sorrir tambem.
– Pois então, é arranjarem, é arranjarem isso e quanto antes, que não ha que fiar no tempo. Eu se pudesse tambem ia, mas já não são passeios para mim, e depois estes criados…
Henrique de Souzellas receiou nova divagação sobre o assumpto predilecto de D. Victoria; mas felizmente acudiu-lhe