Então eu acho que nós temos, desde a nossa formação, elementos e aspectos contraditórios, que, na balança final, eu diria que hoje tendem mais ao conservadorismo, mas que convivem com aquele professor jovem em cuja faculdade eu vou dar palestra e que vem pra mim dizendo: “Posso tirar uma fotografia pra mostrar pros meus alunos eu com a senhora?”. “Mas é claro, vamos tirar”. E ele fala: “Ah, eu trabalho seu livro tal e seu livro tal, porque eu discuto com os alunos isso e aquilo”. Os alunos fazem excelentes perguntas nos debates, quando eu faço uma palestra. Eles mostram perguntas que eles entenderam o que eu disse, entenderam mais do que eu disse. Às vezes, eu até tenho que brincar: “Oh, gente, está ficando muito difícil esse debate, está na hora de terminar, porque agora eu já não sei mais o que vocês estão perguntando”. Porque eles têm sido capazes de fazer perguntas que vão adiante. Assim, esse tipo de situação revela a condição contraditória desses cursos, mas eu acho que a perspectiva dada na instituição, no decorrer do percurso dos professores, tem sido majoritariamente conservadora.
Valéria: E que perspectivas você vê para a Psicologia, daqui pra frente, Ana?
Ana: Então, acho que estar nesse campo da contradição é a nossa salvação. Eu tenho dito isso nas minhas palestras: “Se vocês quiserem certezas e verdades, procurem uma Igreja. Se vocês quiserem aprender a duvidar, entrem na universidade”. Então eu acho que a universidade tem que ser pensada, divulgada, vivida como um lugar de questionamento. A Maria I. Mascelani, que foi minha supervisora e era pedagoga, lecionava no curso de psicologia. Ela dizia assim: “A gente está aqui pra aprender a perguntar, nós temos que perguntar, um estágio não pode ser um lugar de aplicação do conhecimento, apenas. Ele tem que ser não só um lugar em que você aplica, mas um lugar em que você permita à realidade fazer perguntas ao conhecimento que você tem.” Então, em uma supervisão de estágio, temos esses dois momentos: “Olha, você fez isso, está legal, mas qual é a demanda que tem lá? Que tal fazer assim ou assado?”. Mas é bom ter também assim: “O que é que aquele grupo lá, que é a pessoa que você está atendendo, perguntou? O que você sentiu que era incompetente pra dar conta?” E vamos assim. Esse, então, é um espaço em que é necessário buscar a inquietação produzida pela realidade. Eu acho que pensar a universidade como um lugar de inquietação, de perguntas, de questionamento, é fundamental. Para isso, é preciso haver pesquisa. É preciso haver estágio com essa perspectiva, acolhendo a pesquisa, porque pesquisa é dúvida. Por natureza ela é assim. Não há trabalho que não termine dizendo assim: “Muitas questões restaram, foi produzido por esse caminhar etc.”. Todo trabalho acaba assim ou, pelo menos, começa assim. Meus alunos, por exemplo, falam: “Ah, professora, não ficou bom o questionário que a gente fez, porque a gente perguntou e as pessoas entenderam outra coisa”. Eu digo: “Ótimo, está vendo? É isso o que é pesquisar. É crucial perceber que você se equivocou, que sua pergunta tinha limites, então vamos refazer o questionário. É por isso que a gente faz um pré-teste, né? “. Acho que essa inquietação é fundamental. O contato com a comunidade tem que existir, a gente tem que derrubar o muro. A universidade não pode se pensar como um lugar isolado, que pensa através de um microscópio. A gente tem que ter um telescópio e olhar o mundo pra poder servir a este mundo, este mundo social, este mundo próximo da gente, do país onde se insere. Eu quero participar desse social a partir da profissão que eu escolhi. Para isso, eu preciso que a Psicologia tenha uma relação direta com os problemas da vida. Eu acho que é esse o contato com a realidade. E acho que isso vai culminando, vai fomentando uma Psicologia crítica. É isso: uma Psicologia que não tem medo de se modificar; uma Psicologia que está lá pra se modificar, para se inovar e que é capaz de deixar a realidade lhe fazer perguntas, que é capaz de acolher as perguntas que a realidade faz, que é capaz de pensar que o mundo se transforma, aberta para a ideia do processo e do movimento do mundo. Eu acho que isso é fundamental. Eu diria que esses são os aspectos centrais de uma formação. Acho, por fim, que a psicologia tem uma outra coisa para superar: trata-se da ideia da identidade formada pela teoria, pela perspectiva teórica, ou seja: a ideia de trocar a teoria como fonte de identidade pela problemática do real. Então, nós deveríamos nos unir não porque somos sócio-históricos, mas porque somos pessoas que trabalham com a política pública de drogas, que trabalham com a política pública da assistência social. Isso é que deveria nos unir. Nós ainda estamos muito nos guetos teóricos.
Valéria: Ainda com os rótulos pré-definidos.
Ana: É, a gente ainda fica. Ficamos nos defendendo e nos apresentamos assim. O problema de nos defender até que não é grave. A questão é que nós nos identificamos e nos apresentamos como pessoas teóricas, quando a gente deveria se apresentar como aqueles que interferem. Eu quero ser conhecida como a pessoa que estuda a desigualdade social lá na Psicologia, não precisa ser a pessoa sócio-histórica. Eu quero ser conhecida porque eu estudo desigualdade social na educação. Então, eu acho que esses são o que eu chamaria de aspectos centrais. Mas penso que não é fácil. Eu não sou muito otimista, mas creio que a gente tem aprendido que é importante produzir lugares de encontro com essas pessoas que pensam diferente como fez a experiência do evento feito em Brasília, do Fernando, ou como a gente tem feito com o nosso simpósio. Ontem mesmo eu vi um anúncio lá na minha faculdade, divulgando um encontrozinho que vai acontecer, segundo uma determinada perspectiva teórica. Então eu olhei e achei aquilo tão antigo...