Valéria: É, eu acho que a gente tem vivido essa onda bem mais conservadora... Em vista disso, até que é possível nos expressarmos e falarmos a respeito da diferença? Isso tem sido algo preocupante, não?
Ana: Sim, eu às vezes penso que o pensamento progressista está acanhado porque o outro vem com muita força. Voltou esse pensamento de que você faz política, e não Psicologia. E o pensamento mais conservador não tem mais vergonha de se expressar. Ontem mesmo eu estava em uma aula no curso de Psicologia Social com meus alunos do segundo ano e eles disseram assim: “A gente adorou!”; “Ah, que bom! Do que vocês mais gostaram? Por que gostaram?”; “Ah, porque aqui a gente fala da vida real do país”; “Como assim, gente?” “É, nas outras disciplinas a gente não fala. A gente analisa os sujeitos, a subjetividade, a dinâmica psíquica, mas ninguém toca na ideia de que a gente vive em um país que sofreu um golpe. Ninguém fala da juventude, ninguém fala do preconceito racial, ninguém fala do aluno do ProUni. E vocês, professores de Social, trazem isso”. Aqui a gente discute um tema, a gente elege um tema. No primeiro semestre, o tema é preconceito racial e, no segundo, a questão urbana (que é muito interessante, porque eles se dão conta de que vivem em uma cidade sobre a qual nunca pensaram em termos de mobilidade, trabalho e habitação. E a gente toma isso como um fenômeno da psicologia social pra estudar). Então, ao mesmo tempo que é muito bom o professor ouvir isso, de que ele é um professor que traz a realidade, é triste, porque eles estão me dizendo que eu sou a única professora que põe a realidade dentro da sala de aula!
Valéria: Então, você toca em um ponto que me chama bastante a atenção nossos colegas não têm se ocupado de discussões críticas a propósito da Psicologia e do próprio mundo.
Ana: É isso mesmo... Sabe, no Instituto Silvia Lane, junto com a PUC, nós estamos fazendo um esforço pra divulgar a ideia do pensamento crítico, porque nós fomos sempre muito identificados como sócio-históricos, até por causa da Silvia. Mas o Instituto não é exclusivamente formado de sócio-históricos, pois também abre espaço para psicanalistas e behavioristas, de modo que a gente tem feito um esforço para divulgar esta ideia de que é preciso construir uma Psicologia crítica, seja em que abordagem for. O que é uma Psicologia crítica? É uma Psicologia que vincula a sua construção teórica com a realidade em que ela se insere, uma Psicologia que não simplifica as explicações, pois analisa os fenômenos como multideterminados, segundo uma perspectiva de historicidade, uma perspectiva metodológica e epistemologicamente fundante. Então, essa ideia a propósito do que a gente precisa produzir hoje, por incrível que pareça, surgiu alguns anos atrás, de forma corajosa. Hoje ela está tímida, porque o outro lado resolveu dizer assim: “Não, não, pera aí que esse espaço também é meu!”. E não tem nenhuma vergonha de estar lá, de divulgar suas ideias entre os alunos. Há professores lá na PUC que falam assim: “Não, esse negócio sócio-histórico é bobagem. Esse negócio de Psicologia com compromisso com a realidade... Psicologia é uma só, a gente tem o fenômeno psicológico que é um fenômeno que a gente tem que estudar, pesquisar, mas ele independe das condições sociais”. Ao dizer isso para os alunos, eles passam uma ideia naturalizadora do fenômeno psicológico. E isso é inimigo do pensamento político, né? Eu acho que a gente vem vivendo isso... Interessante como o mundo, a exemplo de uma gangorra, sobe e desce. Porque, depois das diretrizes era de se imaginar, que não haveria volta. Mas houve. Houve volta. Eu acho que hoje nós temos espaços bastante conservadores dentro dos cursos. Acho que a maioria da categoria profissional ainda é uma maioria conservadora. Uma maioria conservadora que não está preocupada com as questões sociais e que aplica o modelito padronizado da Psicologia na população pobre!
E é interessante: outro dia mesmo uma menina apresentava um trabalho em sala de aula, e ela disse assim: “Então, mas acontece que a população, a moça que a gente entrevistou, uma pessoa pobre e com pouca escolarização, ela não entendia o que a gente falava, ela não tinha repertório pra responder à nossa pergunta. E aí a gente ficou duvidando, talvez fosse melhor entrevistar uma outra pessoa.” Eu e a Graça, que damos aula juntas, falamos assim “Não, tem que mudar o seu instrumento! Porque se você está querendo falar da pobreza, você tem que ter um modo de falar. Não é possível supor que a pessoa não está entendendo o que você fala e que, portanto, você não pode entrevistá-las”. Foi interessante a discussão, porque os alunos se deram conta disso, eles achavam que a população é que está errada.
Valéria: Ana, vamos para um outro ponto sobre o qual eu queria te ouvir um pouco. Como é que você tem percebido a formação em psicologia?
Ana: Então, eu acho que nós temos ainda uma Psicologia hegemonicamente bem conservadora, naturalizante, que naturaliza o fenômeno que ela estuda. Acho que nós vivemos um período histórico que diz assim: “Cada um pode ter a ideia que quiser e vocês têm que aprender a conviver”. Não é uma convivência dialogante, esse é o grande problema. “Temos que ter diversidade: tem pensamento que é progressista, pensamento que é mais conservador”. Gente, pelo amor de Deus, é isso aí! Agora, não incentivar o diálogo entre essas perspectivas é muito ruim. Antes, então, a gente fazia na PUC, por exemplo, um debate sobre como cada uma das perspectivas teóricas explica um determinado fenômeno. Eu me lembro até que eu participei de um que era a inveja. Me pediram para explicar a inveja ora sob a perspectiva sócio-histórica, a um outro sob a fenomenológica e a um terceiro sob a behaviorista. Hoje em dia você tem mesas só de fenomenologia, só de sócio-histórica. Então nós estamos nos fechando de novo nas casinhas, regredindo a uma época em que fazíamos isso para nos defender. Agora, entendemos que cada um pode ser o que quiser. Desse modo, você oferece essa diversidade e o aluno que se vire, o aluno que escolha. E isso é uma condição da perspectiva universitária, que é a da convivência, da diversidade, do diálogo. Eu tenho um amigo no Sul, em Santa Catarina, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que diz assim: “A universidade é o único lugar onde você não deveria pedir desculpas por discordar, porque você tem a obrigação de discordar. Em qualquer outro lugar você tem que dizer ‘desculpa, mas eu não penso assim’, mas na universidade não”. Só que nós estamos acanhados e estamos pedindo desculpas por discordar, ou pior: não estamos nem explicitando a discordância. Está bom, você pensa assim e pronto! Isso é muito ruim para a formação. Eu diria, no entanto, que a formação em Psicologia hoje tem sorte. Ela tem uma juventude que não fica quieta, que tem informação. Você entra na sala de aula como Ana Bock, um aluno levanta a mão e diz assim: “Professora, você presidiu o Conselho Federal de Psicologia. Poderia falar um pouco sobre isso?”. “Onde você está vendo isso? “ “Não, eu estou vendo isso aqui em uma notícia”. Quer dizer, ele já entrou no Google e já fez uma pesquisa sobre a Ana Bock, que é a professora dele, para saber quem é que ela é, o que ela escreveu etc. Claro, eles lidam