E a outra, que beleza de menina! E como andava garrida, sempre com figuinhas sob as rendas do vestido taful, para conjurar os olhares vesgos da inveja, amimada por todos, de colo em colo, de casa em casa.
Quando o marido chegava do quartel tomava os dois e, com um em cada joelho, punha-se a sacudi-los: upa! upa! e eles a rirem, e ela a rir com eles, enlevada.
Depois o colégio, as horas de saída, o regozijo em casa quando os dois apareciam gárrulos, contando o que haviam feito, todos os pequenos incidentes do dia escolar. Suspirou. Aquela ironia da memória alanceava-lhe o coração. Paulo voltou-se atirando um braço, encolhendo as pernas, com um resmungo. Ela pensou que ele houvesse acordado e, de manso, inclinando-se, examinou-o: dormia profundamente, respirando um hálito quente e azedo.
Bebendo! suspirou ela baixinho, de mãos postas, olhos em alvo, demandando o céu. Bebendo... meu filho, o meu Paulo! E sentou-se, de novo, muito quieta para continuar a dolorosa vigília, perseguida pelas reminiscências, falenas tristes da noite velha do passado que esvoaçavam em torno de sua alma. Já o via rapaz e a ela menina: ele concluindo os preparatórios, ela fazendo os primeiros bordados.
Noites tranqüilas para sempre perdidas quando, na sala de jantar, em volta da mesa, à luz de um lampião de querosene, na casa da Rua Haddock Lobo, Paulo estudava os seus verbos, Violante vestia as suas bonecas e ela, ao lado do marido, gozando aquela delícia honesta, ponteava, cerzia uma roupa ou discorria sobre as necessidades da casa, lembrando compras indispensáveis. Fora, no quintal, havia um jasmineiro, que avassalava o muro e perfumava a casa.
"Uhum! não..." regougou o rapaz voltando-se torcicolosamente e, como o seu rosto ficasse em plena claridade, Dona Júlia afastou a vela, pôs-lhe diante um livro como alparluz para que a sombra lhe protegesse o sono. Paulo pôs-se a mastigar, com estalidos secos e ela, sempre receosa, inclinava-se, d'olhos franzidos, acompanhando, vigiando aquele pesado torpor.
A chama da vela crescia, por vezes, e sombras dançavam na parede macabramente. Havia um roque-roque na sala próxima, um rato a roer e era o ruído único dentro da noite, porque as próprias máquinas viageiras dormiam, repousando das céleres corridas pelos campos largos, pelas serras ásperas.
Outras idéias surgiram no espírito atribulado da miseranda:
Onde andaria Violante? Pobrezinha! talvez sofresse num canto obscuro, guardada pelo homem perverso que a havia seduzido. Ah! sim, devia estar bem escondida para que a polícia, trabalhando como trabalhava, não lhe houvesse podido ainda descobrir o paradeiro.
E se houvesse sido assassinada? Lembrou-se de certa notícia que lera em tempo: o caso de um homem que, depois de haver cevado os seus desejos lúbricos, arrastara a sua vítima, pobre pastora, para uma charneca e a esfaqueara. Teve um arrepio e, d'olhos cravados na parede, ficou a olhar, a olhar...
Uma sombra passou e foi-se adensando, adensando... Círculos iriados dilatavam-se brilhando e desfaziam-se e toda a sua visão ficou reduzida àquelas miragens que, repentinamente, desapareceram.
A porta rangeu: voltou-se assustada e viu o gato entrar maciamente, em passos de arminho, com a cauda hirta. Dando por ela, o animal fez uma volta, corcoveado, esfregou-se-lhe nas pernas, resbunando; depois, fitando-a, com um surdo miado, formou o pulo e saltou-lhe ao colo, como a pedir carinho. Ela acolheu-o, afagou-o passando-lhe a mão pelo dorso flexuoso e macio; o animal, lambendo as patas, deixou-se ficar encolhido e, afundando a cabeça, adormeceu.
O sono chumbava-lhe as pálpebras, ardiam-lhe os olhos e, de quando em quando, a boca se lhe escancarava em largo bocejo ao qual, religiosamente, acudia com o polegar traçando uma cruz.
Mas como havia de o deixar? E se sobreviesse alguma coisa? Estava tão agitado... Foi, então, que se lembrou da enfermidade do filho. Noites de sofrimento e de apreensões: ele abrasado em febre, delirando, ela, sozinha, ainda com o luto pesado do marido, a acompanhá-lo, acudindo com os remédios ou a contar-lhe histórias quando, nas horas de acalmia, ele a chamava para junto do leito, muito humilde, com medo da morte.
Os bocejos amiudavam-se, sentia-se mole, estafada pelo dia de insano trabalho que tivera a desarrumar a casa para a mudança. Pensou em deitar-se no sofá da sala, mas o filho prendia-a. Um galo cantou longe, tristonhamente e, na Estrada, houve um longo chiar de vapor. Eram as viageiras que despertavam para a vida laboriosa. Não tardava a manhã.
Levantou-se lentamente, deixando o gato no chão. O animal corcoveou espreguiçando-se e, vendo que a senhora saía, acompanhou-a em passo sutil. Dona Júlia abriu a janela devagarinho. Uma brisa fresca soprava, o céu estava estrelado e o alvo clarão das lâmpadas da Estrada dava uma ilusão de luar.
Varriam a rua e, numa densa nuvem de pó, uma carroça arrastava-se, moviam-se vultos. "Também agora não vale a pena, disse ela; com pouco mais está aí o dia." E, debruçada, ficou a olhar fundamente, para muito longe, para o tempo d'outrora, o doce tempo!
Lá o via todo, feliz e calmo, lá longe, no irregressível. Dois homens passaram em mangas de camisa, fumando; um levava uma picareta ao ombro. 'Meu Deus..." e ficou-se nesta exclamação que resumia todo o seu espanto, porque parecia impossível que padecesse tanto, sendo tão virtuosa e tendo tamanha fé na Providência. "Não! também é demais!" E à janela, só, dentro do seu desespero, cercada pela noite negra e muda, pôs-se a falar gesticulando.
— Uma sai, vai-se embora; o outro, tão bom menino, faz isto, meu Deus... Que tenho feito eu?! Vejo por aí outras mães tão felizes com os seus maridos, com seus filhos... só eu, então, é que hei de ser a desgraçada? Por quê?
Baixou os olhos e viu a rua mais negra como se a noite houvesse recalcado a sombra. Ao longe havia ainda dois pontinhos luminosos, mas esses mesmos desapareceram - um primeiro, outro depois, e a treva ficou absoluta. "Por que, meu Deus?!" Passou o braço pelos olhos e, chorando, bebendo as lágrimas salgadas, ficou a tamborilar na janela, vazia, inconsciente, dolorosa, com os olhos voltados para o céu mudo.
Um silvo sacudiu-a e toda a rua abalou-se, como a um surdo fragor subterrâneo. Era um trem que partia e, como se nele fossem as suas derradeiras esperanças, rompeu a chorar e retirou-se.
No céu branco, madreperolado, estendiam-se os primeiros laivos d'ouro e púrpura, Ouvindo-lhe os passos na sala de jantar atravancada, Felícia levantou-se à pressa e, entreabrindo a porta do corredor, exclamou, surpresa:
— Uê, minh'ama, vosmecê já se levantou, tão cedo?!
— Então, respondeu Dona Júlia, abrindo a janela. Quando há que fazer...
Uma luz baça invadiu a sala, e o ar puro e fresco da manhã circulou. A velha tomou uma toalha e saiu ao quintal para lavar o rosto, enquanto a negra catava gravetos para acender o fogo. O gato ia e vinha, miando, a esfregar-se em Felícia, e o gaturamo pôs-se a cantar contente, vendo a primeira luz do sol no muro verdinhento e ouvindo o estalar das asas dos pombos.
VIII
Com a chegada das andorinhas, Dona Júlia resolveu acordar o filho e, pé ante pé, entrou no quarto. Paulo dormia profundamente; sacudiu-o:
— Paulo, estão aí as carroças. - Ele abriu os olhos, encarou-a pisco e voltou-se para a parede; ela insistiu: Estão aí as carroças.
— Ah! mamãe... A senhora também... nem me deixa descansar.
— Que queres, se os homens já estão aí para a mudança? Tem paciência.
Paulo resmungou, espreguiçando-se, e a velha saiu, para o deixar à vontade, indo falar aos homens que conversavam à porta, retirando das carroças barricas, velhas esteiras, trapos.
— Por onde quer que comece? perguntou um deles.
— Pela sala de jantar.
O homem foi entrando, dois outros acompanharam-no, e logo, tomando cadeiras, foram-nas conduzindo para a rua, enquanto um ruivo, de cócoras, assobiando, desarmava as