Esta conjuntura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se levantaram nas freguesias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o Cabeleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham enchido a província natal. As pacificas ribeiras do Rio Paraíba e do Rio Grande do Norte, os engenhos, povoações e vilas das duas províncias, que trazem os nomes destes dois grandes rios, começaram a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as propriedades rurais e os pontos populosos de Pernambuco, o terrível imposto a que por mais de uma vez nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos salteadores escolheram para centros das suas operações as matas próximas dos rios, as catingas pegadas aos caminhos donde podiam facilmente espreitar e acometer a seu salvo os inofensivos viajantes que, com o fruto do trabalho honesto e da indústria esforçada, deixaram muitas vezes nessas medonhas solidões o seu sangue, a sua própria vida.
Cresceram a par a idade de Luisinha e o nome odioso do Cabeleira, nome que, principiando como um boato ou uma dúvida, se foi de dia em dia condensando e se constituiu afinal uma fama que ecoou, com os uivos das feras carniceiras, do sul ao norte, do sertão ao litoral, engrossando sempre com as novas façanhas, como um fraco regato acrescenta o volume das suas águas e se faz rio caudal com os subsídios que cada dia recebe em sua longa e demorada passagem pelo deserto.
Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existência, a menina acompanhou com os olhos inundados de lágrimas as fases sucessivas que atravessou esse nome destinado a ter uma página enlutada na história da pátria. E que bem dentro no seu coração estava a imagem do companheiro de infância a quem ela nunca pôde esquecer, ainda quando esta imagem lhe aparecia, como tantas vezes aconteceu, envolta em uma nuvem de sangue, e acompanhada de uníssonas maldições.
À noticia de um novo atentado cometido pelo moço que por uma lei natural da imaginação sempre se lhe representava com as feições do menino de outrora, Luisinha sentia no coração uma dor semelhante à que produz a dentada de uma serpente.
No terço que se rezava de noite em casa de Florinda, na missão que o coadjutor celebrava de madrugada, em qualquer ocasião própria para elevar o pensamento às regiões onde flui a eterna fonte das consolações em cujas águas se retemperam das dores da vida os espíritos resignados e crentes, a pobre moça tinha sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José e o tornasse, pela contrição e pela emenda, digno do perdão da sociedade. Ela não podia crer que, tendo sido esta tantas vezes indulgente para outros criminosos, fosse inexorável para o mancebo que por algum tempo andara apartado do caminho do dever. Pobre, ingênua e crédula criança!
Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava escrito que o cometa que assim abrasava a Terra, percorreria a vastíssima órbita que a Providência lhe traçara, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro de profundas e medonhas escuridões.
Uma tarde Luisinha foi buscar água no Rio Tapacurá, que banha a cidade da Vitória, então povoação de Santo Antão, à qual pertencia Glória de Goitá donde era natural o Cabeleira. Santo Antão distingue-se na história pernambucana pela circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portuguesa contra o domínio holandês, e exercitou direta e decisiva influência no futuro político, comercial, industrial e religioso do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas de fogo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração deste acontecimento, uma lei provincial de 6 de maio de 1843 erigiu a antiga povoação em cidade a que chamou da Vitória como acima se vê.
O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidáveis, estava então cortado pelo rigor da seca de que tratamos no capítulo anterior. No seu largo leito viam-se unicamente, a espaços como de ordinário, pequenos poços onde os habitantes mal achavam água para o consumo diário.
Luisinha, não querendo levar para casa água chafurdada, passou pelos primeiros poços, já muito remexidos, e foi encher a sua vasilha em um que distava pouco menos de quarto de légua da povoação.
O poço ficava à beira de um capão de mato. De um lado o terreno elevava-se gradualmente, e acidentava-se mais adiante, formando ziguezagues quase inacessíveis e esconderijos escuros, a que a espessura das árvores dava um aspecto medonho. Do lado oposto a margem plana, igual e descampada, formava com a banda fronteira um admirável contraste.
Quando Luisinha, da areia do rio onde se sentara a descansar se dispunha a levantar-se para tornar a casa, deu com os olhos em um homem que da borda do mato a observava em silêncio com tal interesse que parecia querer atraí-la a si com a vista.
Sem demora correu ela ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo do outro lado do rio onde estava, o desconhecido veio cair no mesmo instante entre ela e a vasilha, sem perder, no rápido vôo, uma só das armas com que se achava apercebido.
— Em vão, meu bem, pretendes fugir-me. Antes que o diabo esfregasse um olho, eis-me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir embora senão por minha livre vontade.
O sítio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não tardavam a envolver de todo a natureza.
Luisinha, lançando os olhos pela margem afora, não viu viva alma. Teve então tamanho medo, que involuntariamente caiu sentada aos pés do terrível desconhecido. Lembrou-se de gritar por socorro, mas logo viu que seria inútil esta tentativa, Visto que as suas vozes se perderiam no vasto ermo onde unicamente ecoava o coaxar dos sapos e das rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos bacuraus.
— Meu Deus! exclamou ela. Não haverá um cristão que me valha nesta aflição?
— Ninguém, ninguém te valerá, bonita rapariga — respondeu o desconhecido, levantando-a por um braço .e como querendo arrastá-la na direção da língua de terreno por onde se podia ir, a pé enxuto, à margem fronteira.
— Mas, meu senhor — tornou Luisinha achando em si mesma coragem de que nunca se julgara capaz — por tudo quanto é sagrado lhe peço que me deixe ir embora. Ê quase de noite, e, se me demorar mais tempo aqui, arrisco-me a encontrar algum malfeitor que me ofenda no caminho.
— Queres maior malfeitor do que eu?
— Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veio caçar por estas bandas e, como me encontrou neste ermo, está me metendo medo para divertir-se à minha custa. E creio até que havia de defender-me se alguém quisesse fazer-me mal.
— Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar-me das unhas a minha formosa juruti. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por este limpo, ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e...
— Deus me livre! exclamou Luisinha assaltada por novos terrores.
— Olhe: se você não quiser vir por bem, vem por mal — disse o desconhecido.
— Por mal? E onde está Deus? interrogou Luisinha, elevando todo o seu espírito aos pés daquele que está em toda a parte para acudir aos atribulados que o invocam com sincera confiança. Nem por mal nem por bem. Eu não vou com vosmecê ainda que me custe a própria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de dentro deste mato, de cima deste céu. Ele há de lembrar-se de mim.
Diante da firmeza na realidade admirável, com que a frágil moça respondeu à sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente. Tornando logo em si, porém, continuou com certo disfarce de mau anúncio:
— Ora, menina, deixe-se de asneiras e vamos para diante enquanto o caso não fica mais sério. Se você é bonita, eu também não sou feio; assim, podemos ter filhos galantes como os têm os passarinhos no seio da solidão.
— Meu Deus, meu Deus, compadecei-vos de mim enquanto é tempo! exclamou ela quase vencida de terror.
Então à luz crepuscular que enchia a planície como uma neblina, lobrigou Luisinha um vulto que se dirigia para