É que a mais forte das constituições, ou índoles, está sujeita a alterar-se sempre que as forças estranhas, que atuam sobre a existência, vêm a achar-se em luta com suas inclinações. Por mais enérgicas que tais inclinações sejam, não poderão resistir a estas três ordens de móveis das ações humanas — o temor, o conselho e o exemplo, que formam a base da educação, segunda natureza, porventura mais poderosa do que a primeira.
No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo vivo e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espírito de religião que a caracterizava. Em contraposição porém a este salutar elemento de edificação, do outro lado da criança achava-se Joaquim, não só naturalmente mau, mas também obcecado desde a mais tenra idade na prática das torpezas e dos crimes.
Boa mãe era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastada pela ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado a ser o primeiro algoz do próprio ente a quem dera a existência?
A mulher é tanto mais forte, e a sua influência direta e decisiva na formação dos costumes, quanto mais puro é o ambiente do meio social onde ela respira, e esclarecidos são os entes com quem coexiste. Colocada em um tal centro, a mulher não é somente uma providência, — sobretudo uma divindade. As suas forças elevam-se à altura das potências de primeira ordem, e ordinariamente são potências triunfantes, onde quer que seja o mundo moral, não um caos, mas uma criação grandiosa e harmônica, em conformidade às leis da estética cristã e às altas conquistas da civilização que possuímos. As suas qualidades delicadas, fontes de grandezas ímpares, tornam-se porém nulas ou são vencidas, sempre que entram em luta com a ignorância, com o vício, com o crime.
Infelizmente para o Cabeleira, grande ânimo que poderia ter vindo a ser uma das glórias da pátria se a sua bravura e a sua firmeza houvessem servido antes a causas nobres que a reprovados interesses e cruéis necessidades, sua mãe dócil, posto que ignorante, de bonitas ações, posto que nascida de gente humilde, não só não pôde exercitar no infeliz lar a ação benéfica que à esposa e mãe reservou a natureza, mas até foi, como seu filho, uma vítima, não menos do que ele, digna de compaixão, um joguete dos caprichos e instintos brutais daquele a quem ela havia ligado o seu destino, não para que fosse o seu tirano mas para que a ajudasse a carregar a cruz da pobreza.
Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira não estava destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os maus conselhos e os péssimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai converteram seu coração, acessível, em começo, ao bem e ao amor, em um músculo bastardo que só pulsava por fim a paixões condenadas. Desgraçadamente estas paixões que nele escandalizara a sociedade coeva, não desceram com seu corpo à sepultura, Elas estão aí exercitando em nossos dias o seu terrível império à sombra da ignorância que ainda nos assoberba, e que em todas as terras e em todas as idades tem sido considerada com razão a origem das principais desgraças que afligem e destroem as famílias e os Estados.
Joana, a mãe boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o pai sem alma nem coração. José foi sempre o motivo, a causa desse combate sem tréguas, José, o filho sem sorte que estava fadado a legar à posteridade um eloqüente exemplo para provar que sem educação e sem moralidade é impossível a família; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de obrigar o pai a proporcionar à prole, ou de proporcioná-lo ela quando ele o não possa, o ensino que forma os costumes domésticos nos quais os costumes públicos se firmam e pelos quais se modelam.
Aos sete anos de idade o pequeno já sabia matar passarinhos com seu bodoque, presente que lhe fizera o pai com expressa recomendação de amestrar-se em seu uso para que viesse a ser mais tarde um escopeteiro consumado.
— Ó José, ouve bem o que te vou dizer. Quando o sanhaçu ou o bem-te-vi não cair morto da bala do bodoque, mas só com uma perna ou uma asa quebrada não lhe apertes o pescoço para que não esteja penando. Faze um espetinho de cabuatã, e crava-o na titela do passarinho. Tu não sabes que os passarinhos são diabinhos que nos perseguem, furando as laranjas e destruindo as bananas do quintal?
— Tenho pena, papai, e não farei isso aos pobrezinhos — respondeu o menino.
— Tens pena, tu José? Pois sabe que é preciso que percas esta pena e que te vás acostumando a ser homem. Se hoje cravas o espeto na titela do bem-te-vi, amanhã terás necessidade de cravar a faca no peito de um homem; e se no momento da execução tiveres a mesma pena, ai de ti! que a mão te fraqueará, e o homem te matará.
Uma manhã José entrou saltando de contente, e trazendo um preá que o fojo tinha apanhado.
— Ó papai, como é que hei de matar este preá?
Joana chamou o menino para junto de si, tomou-lhe a presa que ele trazia, e pôs-se a mirá-la com ternura.
— Olha, meu filho, olha bem para ele. Não achas vivos e bonitos os olhos do preazinho? Que lindo pescoço! Que mãos bem-feitas! Que dizes, José?
— É, mamãe. Acho tudo bonitinho.
— E se o achas bonitinho, para que o queres matar, meu filho?
— Para aprender a matar gente quando eu for grande.
— Matar gente! José, José! Quem te ensinou esta barbaridade? Virgem da Conceição!
— Foi papai, mamãe.
— Não, eu não consentirei, nem o céu permitirá que levantes em tempo algum a tua mão para ofender a alguém. Que desgraça, Mãe Santíssima! Como é que Joaquim ensina semelhantes coisas ao filho?!
— Dê-me o meu preá, mamãe. Quero espetá-lo vivo como fiz ontem com o papa-capim.
— Ainda me vens falar nisso? exclamou Joana consternada.
E levada de uma inspiração ou de um repente irresistível, chegou à porta que dava para o pequeno cercado onde o capinzal crescia, e aí soltou o inocente prisioneiro.
José chorou, gritou, esperneou, rolou pelo chão com raiva. Irritada por este procedimento, para o qual. ela foi buscar explicação antes na inconveniente direção que a José ia dando Joaquim que no impulso de reprovadas paixões de que julgava isento o filho naturalmente dócil e terno, puxou-lhe de leve pelas orelhas, dizendo-lhe que se outra vez judiasse com os passarinhos lhe daria uma surra que ele havia de agradecer.
Quando Joaquim voltou a casa, o menino correu a relatar-lhe o que tinha acontecido. O mau marido, o péssimo pai ralhou com Joana em quem por um triz não bateu; e para completar a lição e o exemplo pernicioso, prometeu a José que o primeiro preá que o fojo pegasse havia de ser sujeito a um gênero de morte que ele ainda não conhecia.
O menino mal pôde dormir aquela noite. Nunca desejou tanto que a armadilha lhe desse caça. A curiosidade de conhecer a nova forma de matar os animais, prometida ao primeiro que tivesse a sorte de se deixar apanhar, o teve por muito tempo na maior excitação e vigília.
Pela manhã correu José ao fojo, onde encontrou, em lugar de preá, um coelho.
Era uma lindeza o animal. Gordo, coberto de macio pêlo em que se divisavam ligeiras malhas tão alvas como o algodão que pendia dos capulhos estalados acima de sua masmorra, o filho do campo despertava, pela beleza das formas e pela harmonia dos contornos, todos os sentimentos benévolos de que é capaz o humano coração. Os olhos reluziam como dois coquinhos polidos, O coração batia-lhe precipite qual se quisesse sair-lhe pela boca. E essa criatura tão cândida e inofensiva ia morrer! Oh, meu Deus, por que extravagante e bárbara interpretação das leis naturais, há de o homem julgar-se com direito à vida de semelhantes entes que mais merecem a sua proteção do que desafiam a sua covardia?
Quando José, irresistivelmente cativo da formosura da inocente criaturinha, estava ainda admirando os seus encantos, um movimento violento arrancou-lha das mãos.
— Meu coelho! gritou o menino