— O senhor me perdoa?...
— Não! Não! Não! clamaram de todos os lados.
Mas a menina parecia contar com o poder de seus lábios, porque, sorrindo-se ainda do mesmo modo, tornou a perguntar com meiguice e ternura:
— Me perdoa?...
— Não! Não!
— Porém, como resistir ao seu sorriso?... Como dizer que não a quem pede como ela?...exclamou Augusto, entusiasmado.
D. Carolina estava, pois, perdoada.
— Agradecida! disse ela com vivo acento de gratidão e estendeu sua destra para Augusto que, não podendo ceder tudo com tão criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela mãozinha de querubim e fez estalar sobre ela o beijo mais gostoso que tinham até então dado seus lábios.
A manhã deste dia foi assim passada e à tarde voltou-se aos preparativos dosarau.
Capítulo XVI: O sarau
‘Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo. Em um sarau todo o mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais intrincados negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado. O velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço goza todos os regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no seu elemento; aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do écarté mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um sustenido; daí a pouco vão outras pelo braço de seus pares, se deslizando pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que vieram para o chá, e que ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um ataviado dândi que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca, porque, para alguns e regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos.
E o mais é que nós estamos num sarau: inúmeros batéis conduziram da corte para a ilha de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidade: alegre, numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre todas essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam por ver qual delas vence em graças, encantos e donaires, certo que sobrepuja a travessa Moreninha, princesa daquela festa.
Hábil menina é ela! Nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e, contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo toda a habilidade das modistas da rua do Ouvidor e coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jóias, d. Carolina dividiu seus cabelos em duas tranças, que deixou cair pela costa; não quis adornar o pescoço com seu adereço de brilhantes nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser sobejamente comprido. Vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e atenções.
Porém, se um atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava assim, para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a alvura de seu vestido branco, e para mostrar, todo nu, o elevado colo de alabastro, que tanto a aformoseava, e que seu pecado contra a moda reinante não era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais bem feito e mais pequeno que se pode imaginar.
Sobre ela estão conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo; terminaram sem dúvida a sua prática; não importa. Vamos ouvi -los.
— Está na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.
— Danças com ela? perguntou Leopoldo.
— Não, já estava engajada para doze quadrilhas.
— Oh! Lá vai ter com ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.
Os dois estudantes aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a mercê da terceira quadrilha.
— Leva de tábua, disse Fabrício ao ouvido de Leopoldo; é a mesma que eu lhe havia pedido.
Mas a jovenzinha pensou um momento antes de responder ao pretendente; olhou para Fabrício e com particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e respondeu a Augusto:
— Com muito prazer.
— Mas minha senhora, disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão que lhe dera Leopoldo; há cinco minutos que já estava engajada até á duodécima.
— E verdade, tornou d. Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa; o sr. Augusto poderá dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança.
— Juro... balbuciou Augusto.
— Basta! acudiu Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem, depois das palavras de uma senhora.
Fabrício e Leopoldo retiraram-se; d. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse este alguma explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se, tomou o braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:
— Agradeço-lhe a condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi necessário que eu praticasse assim; quero antes dançar com qualquer, do que com aquele seu amigo.
— Ofendeu-a, minha senhora?
— Certo que não, mas diz-me coisas que não quero saber.
— Meu Deus! É um crime que também eu tenho estado bem perto de cometer!
— Pois bem, foi esta a única razão.
— Mas eu temo perder a minha contradança... alguns momentos mais e serei réu como Fabrício.
— A culpa será de seus lábios.
— Antes dos seus olhos, minha senhora.
— Cuidado, sr. Augusto! Lembre-se da contradança!
— Pois será preciso dizer que a detesto?...
— Basta não dizer que me ama.
— Ë não dizer o que sinto; eu não sei mentir. Ainda há pouco ia jurar falso...
— Nas palavras de um anjo ou de uma...
— Acabe.
— Tentaçãozinha.
— Perdeu a terceira contradança.
— Misericórdia! Eu não falei em amor!...
Neste momento a orquestra assinalou o começo do sarau. E preciso antecipar que nos não vamos dar ao trabalho de descrever este; é um sarau como todos os outros, basta dizer o seguinte:
Os velhos lembraram-se do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém cuidou do futuro. Os solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados trabalharam por esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e requestaram as moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e criticaram desapiedadamente umas às outras. As filhas deram carreirinhas ao som da música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas e as avós, por não terem que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar as toucas e a comer doces. Tudo esteve debaixo destas regras gerais; só basta dar conta das seguintes particularidades: